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  • Júnior Matos e Nah Jereissati

Elx


Talvez dormir de luz apagada fosse demais. Na realidade, fechar os olhos, como se abranda uma seteira de uma muralha, já era demais. Só que tudo isso já era muito sobre-humano. Precisava dormir. Precisava descansar. Acordou com aquele sol artificial nas rugas. Era como um explosivo lembrete amarelado: LUZ. Agora: câmera -ação.

Como um insólito biquíni amarelo-limão, guardava sua identidade dentro do seu guarda-roupa. Visto que sempre era inverno lá fora, seu repertório cotidiano brincava entre os tons aguados do cinza. Estranho, parecia não apenas ter perdido a capacidade de se expressar em público, como inclusive ter esquecido o que originalmente pretendia dizer com o que usava. Apenas era. Apenas repercutia um borrão. Saber e não saber.

Levou as mãos aos pequenos relevos do rosto, num gesto casual do acordar. Não queria abrir os olhos, como não quisera no dia anterior e nos dias que antecederam a este. Mas, como nos outros, sempre precisava deixar-se ver. O mundo. Si. Sentou-se a cama com os dedos frágeis ainda a mapear o rosto que por anos lhe era a identidade. A forma como as linhas acabavam sutilmente naquela extremidade abaixo da boca nunca diferiram – a mesma angulação que entregava seus modos. A grande luz solar que lhe era iluminação de palco agora queimava um pouco mais, lembrava-lhe do que precisava – precisava levantar e ser o que não era. Suspirou, como quem procura o ar numa campo aberto. Precisava vestir as fantasias.

Sentia. Sentia muito. Sentia todas as pontadas de dor que em um segundo são permitidas. E ardia. Ardia o medo, a injustiça, a permissividade. Tudo ardia. E como borboleta que se regride a lagarta, ia arrastando aquela segunda pele sobre si. Escondendo as asas, as cores, o mundo. E tudo implodia. Precisava – precisava das fantasias.

Levantou-se, arrastando os pés cansados ao banheiro limpo demais. Dormia com o corpo nu para que ao menos no descanso pudesse sentir-se livre. Evitou o espelho, fingindo que aquele objeto translúcido não existia. Passeou os dedos pelos azulejos brancos e frios sentindo suas extremidades começarem a formigar. Sabia o que viria – acostumara àquela sensação. Vagarosamente, todo o formigamento espalhou-se, tomando-lhe os braços, as pernas, as costas, a nuca – o sexo. Começara, então, a arder.

A arder como uma ferida arde ao se arrancar, infantilmente, a casca. Sua pele era como carne viva, uma ferida aberta que precisava ser limpa, desinfeccionada. E coberta. Num desespero pelo insuportável, jogou-se dentro do quadrado envidraçado e ligou o chuveiro, deixando a água gelada demais cair sobre a carne. E arder. Arder levando seus fluidos. Até não arder mais. Podia sentir o cheiro de limpeza emanando de suas entranhas. Mas a ferida continuava aberta, exposta. Caminhou até a pia com os olhos baixos. Respirou fundo e ergueu a cabeça. Olhou no espelho a pessoa que agora era – o túmulo de ser o que nunca era. E foi enfrentar o mundo.

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