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  • Alessandro Fernandes

Especialistas e organizações se preocupam com mudanças na área de saúde mental no Brasil


O Brasil está promovendo neste mês a sexta campanha de prevenção ao suicídio, o Setembro Amarelo. A campanha acontece durante o segundo ano da pandemia da Covid-19 em meio a uma estabilização dos casos de pessoas que morreram por suicídio, retrocessos em políticas de saúde mental e novos desafios para prevenir e reduzir o número de casos, que são considerados altos, no país. Iniciada em 2015, a campanha do Setembro Amarelo reúne atividades, debates e iniciativas de conscientização que massificam o conhecimento sobre um assunto que ainda é considerado tabu pela sociedade brasileira.


De acordo com o 15° Anuário Brasileiro de Segurança pública, o número de pessoas que morreram por suicídio em 2020 foi de 12.895, um número alto se comparado a índices anteriores, mas estável. Houve uma elevação de 0,4%, ou 150 casos, no país, indicando uma estabilização em relação a 2019. Boa parte dos especialistas afirmam que há subnotificação de casos, é o que acredita a psicóloga do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Elaine Macedo, “a subnotificação é real, e sempre existiu, pois nem sempre podemos afirmar que houve o suicídio, preferindo-se registrar a forma da morte como a sua causa”, além disso, ela sugere que ainda há um tabu entre famílias e comunidades, o que pode influenciar nas notificações. Mas o psicanalista e podcaster Guilherme Facci acha complicado “falar em estatísticas e números quando o assunto é suicídio”, ele reforça que “o desejo humano é anômalo [irregular, atípico], é impossível tentar fazer uma leitura normalizadora”.


Embora o número de suicídios não tenha se elevado durante a pandemia no Brasil, o consumo de álcool e outras drogas, além de casos de transtornos mentais, cresceram significativamente. Segundo o levantamento anual da Global Drug Survey (GDS) divulgado pela revista Carta Capital, o país registrou um aumento de 17,2% no consumo de maconha, 13,5% no de álcool e 12,7% no uso de medicamentos para a ansiedade. Outro estudo da Fundação Oswaldo cruz (Fiocruz) junto com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Estadual de Campinas (Unicamp), mostrou que o consumo de tabaco cresceu 34% no primeiro ano da pandemia no país. Essa elevação já era de certa forma esperada pelas organizações de saúde e o crescimento no consumo de drogas é um fator de risco, quando usadas de forma abusiva, nos casos de suicídio, conforme aponta a cartilha Suicídio na Pandemia elaborada pela Fiocruz. Para a psicóloga, Elaine Macedo, é necessário “investir em promoção de habilidades psicológicas nas pessoas” para que elas consigam enfrentar suas crises, e que o “Estado pode, e deve, investir em políticas de saúde mental, com ações desde a psicoeducação, até o tratamento psicológico para quem já tem algum acometimento”, complementa.


Embora seja claro os efeitos imediatos da pandemia da Covid-19 na saúde mental das pessoas, o psicanalista, Guilherme Facci. ainda acha cedo prever os impactos a longo prazo desse fenômeno no mundo. Segundo ele, se tomarmos a última experiência de uma pandemia (a da Gripe Espanhola), não haverá grandes mudanças, até mesmo o “compartilhamento das angústias e um semblante de união e colaboração mundial entre as pessoas aconteceu de maneira frágil no início da pandemia e já se desfez”, avalia.


Mas não podemos negar que 2020 foi um ano difícil e muitos sentimentos como tristeza, angústia e perda de sentido da vida se tornaram cada vez mais frequentes entre as pessoas. Um estudo lançado no fim de 2020 e noticiado pelo UOL mostrou que 40% dos brasileiros se sentiram tristes ou depressivos durante a pandemia. É o caso de Ioná Ricobelo, que precisou fazer uso de medicamentos, “me deu medo, fiquei assustada, mas finalmente entendi que análise é superimportante, mas às vezes precisamos de uma mãozinha química ali no nosso cérebro para fazer as coisas funcionarem melhor”, relata. Mesmo que muitas pessoas ainda sejam resistentes a algum tipo de tratamento e o tema seja um tabu, Ioná completa com um pedido: “se permita se cuidar de verdade.


Mesmo que dê medo, mesmo que assuste. E não deixe de pedir ajuda, de sinalizar que você está frágil. Viver com transtorno mental não é fácil, mas pode ser mais leve se a gente aceitar a nossa condição e fazer o que está ao alcance para seguir existindo, sonhando e se enxergando em novos mundos possíveis.”

A pesquisadora, Rosana Teresa, em artigo publicado na revista Scielo, afirma:

o combate ao estigma é um importante fator para reduzir também o gap de mortalidade da população com transtornos mentais”. Para a psicóloga, Elaine Macedo, além de buscar trazer de volta o prazer pela vida que muitas pessoas perderam, é importante também ter “uma forte rede de apoio, bom relacionamento familiar, acesso à educação, saúde, assistência social, lazer e outros serviços.

Já o psicanalista, Guilherme Facci, comenta que proibir o suicídio é dar as condições para que ele seja fetichizado, considera ainda “fundamental o trabalho que instituições sem fins lucrativos como a EXIT e a DIGNITAS fazem (na Bélgica, Suíça, e em outros países desenvolvidos) na prevenção, mas também no apoio, e oferecendo as condições para os que desejam pôr fim às próprias vidas possam fazer de maneira digna. Essa a meu ver é a radicalidade de uma questão ética e não moral”.


Papel do Estado

Durante o Setembro Amarelo iniciativas de apoio psicológico são potencializadas no país. ONGs, órgãos governamentais, psicólogos independentes e vários outros grupos trabalham na tentativa de atender a demanda de pessoas que necessitam de atendimento urgente. Uma das mais relevantes delas é o Centro de Valorização à Vida (CVV), que atende 24h por dia, de forma gratuita, através do número 188 em todo o território nacional. Mas apesar de importantes e cumprirem um papel significativo no atendimento em saúde mental, elas representam apenas soluções paliativas que, sozinhas, não são suficientes. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera os investimentos públicos na área de saúde mental um fator essencial, especialmente porque é um setor que recebe poucos investimentos. Em média, os países gastam em torno de 2% de seus orçamentos de saúde em saúde mental.


Segundo o Ministério da Saúde, dos R$ 150 bilhões do orçamento em 2020, foram destinados pouco mais de R$ 1,5 bilhão na habilitação de serviços na Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e R$ 1,3 milhão em incentivo a novos serviços, apenas 1,1% do orçamento total. Para o Programa de Volta para Casa (PVC) foram pagos R$ 21,6 milhões em 2020 aos 4292 beneficiários do programa. Segundo o órgão, o foco das ações do Ministério da Saúde é no atendimento de crises e no fomento de equipamentos que possam atender com qualidade às urgências e emergências psiquiátricas.


O Brasil conta com uma importante rede de cuidados à saúde mental, uma conquista histórica do movimento de reforma psiquiátrica, que reivindica a substituição dos hospitais psiquiátricos, os antigos manicômios, por instituições comunitárias centradas no território dos indivíduos e com outros modelos de tratamento. A Política Nacional de Saúde Mental, sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 2001, é considerada um marco nos rumos que o Brasil tomou na área de saúde mental. A partir daí surge a Rede de Atenção Psicossocial, que engloba os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, Unidades de Acolhimento (UAs), além dos leitos de atenção integral.


O Ministério da Saúde, em resposta à esta reportagem, informou que a RAPS conta atualmente com 2.749 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), desse total, 274 são especializados em infância e adolescência e 457 no atendimento de Álcool e outras drogas; além de 1.802 leitos em hospitais gerais e 13.098 leitos em hospitais psiquiátricos. Também integram a rede 42 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS), 144 Consultórios de Rua, 69 Unidades de Acolhimento (Adulto e Infanto-juvenil), e 59 Equipes multiprofissionais de atenção especializada em saúde mental.


No entanto, especialistas e militantes do movimento pela reforma psiquiátrica vêm denunciando sucessivas reduções e retrocessos em investimentos na área de saúde mental, especialmente na política de drogas. Conforme divulgado pela BBC Brasil, o investimento do governo federal em políticas de drogas caiu de R$ 1,8 bilhão em 2017 para R$ 476 milhões em 2019. Em contrapartida, a despesa do Ministério da Justiça com política sobre drogas teve seu gasto mais alto em 2019, com R$ 421 milhões, uma inversão que também se expressa no aumento do investimento em Comunidades Terapêuticas.


Retrocessos sob o governo Bolsonaro

Pesquisadores, organizações de saúde mental e movimentos sociais demonstram preocupação com o que chamam de retrocesso nas políticas públicas em saúde mental no Brasil. “O Brasil tem passado os últimos quatro anos por um forte processo de desmonte dos pressupostos que construíram as últimas três décadas de organização social e comunitária e das políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas que foram vanguarda na promoção do cuidado em liberdade e dos direitos humanos”, diz a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) em um memorial assinado por 13 instituições que descreveu o atual quadro das políticas de saúde mental no país.


Segundo o estudo sobre o desmonte da política nacional de saúde mental entre 2016 e 2019 feito pelos pesquisadores Nelson Cruz, Renata Gonçalves e Pedro Delgado, publicado na revista Trabalho, Educação e Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz, entre dezembro de 2016 e maio de 2019 foram editados cerca de 15 documentos normativos que formaram a nota técnica 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS chamada de Nova Política Nacional de Saúde Mental. Na época, a Defensoria Pública da União apontou que a nova PNSM contrariava a Constituição brasileira e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.


Entre as críticas feitas pelas organizações estão o redesenho na política de drogas, a inclusão dos hospitais psiquiátricos na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a prescrição de internações involuntárias como estratégia central no cuidado aos usuários de drogas e os vetos presidenciais à Lei n° 13.840/2019, que descaracteriza os órgãos fiscalizadores, a participação da sociedade e reduz os recursos/estratégias direcionados à inclusão social, trabalho e geração de renda.


Uma delas em destaque é o fomento às Comunidades Terapêuticas, uma política iniciada durante o segundo governo Dilma que ganhou muitos investimentos financeiros com Bolsonaro. Segundo o Ministério da Cidadania, em resposta à BBC Brasil, o investimento nas Comunidades Terapêuticas subiu de R$ 40,9 milhões em 2018 (2.900 vagas financiadas) para R$ 153,7 milhões em 2019 (10.833 vagas financiadas). Atualmente há 483 contratos com instituições, que além de sofrerem críticas por aplicarem um modelo de abstinência às drogas e não de redução de danos, são alvos de inúmeras denúncias de maus tratos, trabalho compulsório e agressões físicas, como revelado pela Agência Pública no ano passado. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), das duas mil Comunidades Terapêuticas, 82% têm ligações com organizações religiosas (40% pentecostais e 27% católicas.


As Comunidades Terapêuticas atuam de forma desterritorializada e com foco no indivíduo, o que para muitos especialistas vai na contramão do que foi definido pela Política Nacional de Saúde Mental em 2001. Para Mônica Nunes, do GT de Saúde Mental da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em entrevista ao Brasil de Fato, é preciso “conhecer mais de perto o que está acontecendo nas redondezas, o que está acontecendo dentro daquela casa, na vida daquela pessoa, para que as soluções possam surgir e você consiga contribuir com algum tipo de saída para o que a gente chama de crises”.


Outro empecilho para o aumento do financiamento das políticas em saúde mental é a Emenda do Teto de Gastos, aprovada em 2016, que limita as despesas do governo em diversas áreas durante um período de 20 anos. Segundo o memorial da Associação Brasileira de Saúde Mental - ABRASME, só em 2019 a perda foi de R$ 17,6 bilhões no financiamento do SUS, o que pode abrir espaço para parcerias público-privadas e mercantilização de serviços de saúde pública, como já acontece no caso das Comunidades Terapêuticas.


Os rumos tomados pelo atual governo na saúde mental preocupam as entidades de defesa da Reforma Psiquiátrica e das políticas públicas que vêm sendo substituídas ou revogadas. Para o Conselho Regional de Psicologia do estado do Paraná, “os retrocessos impostos por essa iniciativa do Ministério da Saúde representam o fortalecimento da lógica manicomial e hospitalocêntrica, com foco no saber (e poder) médico”.


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