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Entre a excelência do Programa Nacional de Imunização e a negligência governamental

Andréa Soares

Em artigo de opinião, a administradora e coordenadora de projetos socioculturais Andrea Soares destaca a contradição entre sermos um país reconhecido pelos programas de imunização em massa e, ao mesmo tempo, termos tido o pior desempenho no mundo no combate à pandemia de covid-19


Imagem: Tânia/Agência Brasil

Abrimos 2021 com a marca de mais de 200 mil mortes notificadas por covid-19 em nosso país, com uma média móvel assustadora de mil mortes diárias, um plano nacional de vacinação cheio de lacunas e as incertezas de datas, prazos, ordenamento de distribuição e quantitativos das possíveis vacinas.


Soma-se a isso a falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, que gerou um colapso no sistema de saúde local e provocou a morte de pacientes por asfixia; a desconfiança crescente da população em relação aos imunizantes; e o fim do auxílio emergencial e de qualquer programa de proteção aos mais frágeis. Tudo isso regado a uma disputa política entre o governo federal e o de São Paulo. O cenário não acenava para um ano melhor que o anterior.

Em meio ao desalento de nossa crise multifacetada — sanitária, econômica, social e política —, a aprovação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) do imunizante chinês — o CoronaVac — e a cena emocionante da enfermeira paulistana sendo vacinada reacenderam a esperança de que o pesadelo estava próximo do fim.


Como a terra seca do sertão às primeiras chuvas, tudo verdejou com o início da vacinação. Esqueçamos o negacionismo presidencial e a necropolítica. Esqueçamos o teor publicitário e marqueteiro da primeira vacina sendo administrada pelo candidatável João Dória. Esqueçamos das mortes diárias e dos que não puderam aguardar pela vacina. Lembremos que temos o Sistema Único de Saúde (SUS) e um programa de imunização internacionalmente reconhecido. Lembremos das instituições brasileiras que nos orgulham, como o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz. Reconheçamos os funcionários públicos por trás da produção, distribuição e aplicação dos imunizantes. Celebremos o início de um novo tempo.


Pior desempenho no mundo


Mas o entusiasmo inicial não durou muito tempo. Voltamos a nos deparar com a irrealidade da condução da crise sanitária pelo governo federal, último classificado no ranking mundial da reação de países frente à covid-19, produzido pelo centro de estudos do Lowy Institute da Austrália. Os dados compilados ao longo de nove meses, até 9 de janeiro, analisaram os indicadores de mortalidade, número de infectados, aplicação de testes e população afetada pela pandemia. Mas, como um país reconhecido por seus programas de imunização em massa, pelo sistema unificado de saúde pública e por programas de produção e distribuição de medicamentos, como os contra o HIV, pode ter tido não um desempenho ruim, mas o pior desempenho entre os países analisados?


Para tentar entender um pouco o retrato do Brasil frente à crise de saúde atual, é preciso debatermos o que temos de potencial para uma mudança de cenário e quais são os empecilhos para uma condução responsável do enfrentamento à pandemia do Sars-CoV-2.


O Brasil possui um programa de imunizações consolidado e é referência em intervenção em saúde pública, certificado pela erradicação da poliomielite, pela eliminação do vírus da rubéola, difteria e coqueluche e pela redução dos casos e das mortes pelas doenças imunopreveníveis, existente há 46 anos.


Segundo artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública (CSP), revista mensal vinculada à Fundação Oswaldo Cruz, “o Brasil é um dos países que oferece o maior número de vacinas, de forma gratuita, com 15 vacinas para crianças, sendo nove para os adolescentes e cinco para os adultos e idosos”.


Além disso, o nosso país é autossuficiente na produção de várias vacinas, garantindo livre acesso e alta cobertura populacional, chegando a atingir o índice 95,7% em 2015. Infelizmente, a cobertura vacinal tem registrado redução nos últimos anos, atingindo o patamar de 45,65% em 2019.


Falhas na gestão de políticas públicas


Não é possível afirmar se a retração da cobertura vacinal nos últimos anos foi resultado exclusivamente da ineficiente gestão da política pelos governos Temer e Bolsonaro ou se resultou de falhas de alimentação do sistema. O fato é que o Brasil, um dos países com o maior calendário vacinal do mundo, com campanhas de vacinação de massa realizadas anualmente, possui capacidade técnica, material e distributiva para responder à altura o desafio de imunizar sua população de forma rápida e eficiente. O país poderia ser exemplo para o mundo.


Um dos maiores avanços do Programa Nacional de Imunização (PNI) é a sistematização da vigilância epidemiológica e a criação de sistemas informacionais integrados, que facilitam o acompanhamento dos indicadores de saúde em um país de dimensões continentais como o nosso. O que nos faz concluir que o maior desafio do SUS e do PNI não é técnico, mas político, está na seara da vontade política.


Na atual conjuntura, caracterizada pela maior crise sanitária do século, o governo federal tem falhado em tantas dimensões que é até difícil listá-las em poucas linhas. As falhas são tão graves que podem conduzir a uma conclusão de que não são falhas, mas uma ação coordenada e deliberada de necropolítica, ou a eliminação de seu próprio povo, como forma de controle pelo medo, pelo caos, pela desinformação e, sim, pela morte.


Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro tem se colocado no campo do negacionismo da gravidade da doença, chamando-a de “gripezinha” e insinuando que apenas os mais fracos iriam sucumbir, sem nenhuma intenção de mascarar o viés de eugenia em sua fala.


Tão logo o desenvolvimento do imunizante CoronaVac avançou, Bolsonaro passou a desacreditar a vacina e a incentivar a recusa da população em se imunizar, alegando ele próprio que não se vacinaria, para tão logo decretar sigilo por 100 anos de seu cartão de vacinas.


Desgastes políticos


Não bastasse o discurso não científico do presidente, as relações comerciais com a China, maior parceiro do Brasil, ficaram abaladas com o constante ataque do clã Bolsonaro e de seu séquito de apoiadores ao gigante asiático, chegando a cancelar a negociação de compra de 46 milhões de doses da CoronaVac.


Enquanto isso, seu maior adversário político, o governador de São Paulo, João Doria, avançava com a empreitada de iniciar a vacinação estadual no dia do aniversário de São Paulo, numa jogada de marketing e de pressão política que fez o governo federal rever sua postura de resistência à imunização.


As falhas na diplomacia também retardaram o recebimento de insumos para a produção das vacinas pela Fiocruz e Butantan, que possuem capacidade produtiva que poderia fazer o Brasil fabricar doses suficientes para seu público interno e ainda exportar o excedente, conforme aponta Marselle Nobre de Carvalho, chefe do Departamento de Saúde Coletiva do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Londrina.


Despolitizar a vacina


Para mudar o curso da situação calamitosa em que se encontra, o governo brasileiro precisaria abandonar a politização das vacinas, corrigir as falhas diplomáticas e efetivar uma coordenação integrada e nacional da crise de saúde. O Brasil tem uma enorme vantagem, que é a existência do sistema único de saúde (SUS), com capilaridade em todo o território nacional.


O Programa Nacional de Imunizações possui 37 mil salas de vacinação e uma experiência em imunização em massa que alcançou 100 milhões de pessoas contra H1N1 em apenas três meses e 19 milhões de crianças contra poliomielite em apenas um dia. O SUS é a maior riqueza nacional e, enquanto tivermos um governo que o ataca e o fragiliza deliberadamente, perderemos muito mais vidas. A defesa do SUS por todos nós talvez seja a luta mais importante na atual conjuntura, um gesto de democracia e de humanidade.


* Andréa Soares é uma apaixonada pela arte e pela cultura, administradora, mestranda em planejamento de políticas públicas e atua, desde 1993, no terceiro setor, na elaboração e coordenação de projetos socioculturais da Edisca. Atualmente integra o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente como conselheira suplente.


** O conteúdo deste artigo de opinião é de responsabilidade de sua autora e não necessariamente reflete a linha editorial do Portal da Liga.


*** Este artigo de opinião foi produzido no âmbito da Formação de Articulistas da Liga, formação oferecida a representantes de movimentos sociais pela Liga Experimental de Comunicação, projeto de extensão dos cursos de Jornalismo e de Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Ceará (UFC).


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