Por Ana Vitória Lima
Desde a Idade Média até o fim do século XIX, a criação e os costumes sociais eram extremamente pautados nos fundamentos cristãos, onde a mulher ainda carregava a marca de pecadora primeira, aquela que havia trazido o pecado ao mundo. A luxúria sexual teria iniciado com elas e os homens eram vítimas disso.
A partir dessa moral cristã difundida desde o nascimento, justificavam-se as violências e castigos reservados às mulheres nessa época. Um dos maiores “títulos” direcionados para esse grupo era o de “bruxa”. Dessa maneira, a igreja e os homens mantinham a mulheridade em um lugar de subordinação. Qualquer conhecimento adquirido ou desejo de praticar sua individualidade vindo de indivíduos femininos levava a julgamentos e, provavelmente, à morte dessas pessoas.
Com o passar do tempo, o surgimento da burguesia, mais tarde da revolução industrial e com o desenvolvimento econômico, a religião perdeu grande parte da sua influência. As classes mais altas se afastaram da moral cristã, mas não totalmente. Muitas das ideias difundidas pela religião já habitavam o inconsciente coletivo, perpetuando as imagens construídas no período medieval.
Segundo bell hooks em seu livro “E eu não sou uma mulher?”, ela cita que:
No século XIX, a crescente prosperidade econômica dos estadunidenses brancos os levou a se desviarem dos ensinamentos religiosos severos […]. Com o distanciamento da doutrina fundamentalista cristã veio a mudança na percepção que homens tinham das mulheres. As mulheres brancas já não eram retratadas como sedutoras sexuais. eram exaltadas como “a metade mais nobre da humanidade”, cujo dever era elevar os sentimentos dos homens e inspirar os mais altos impulsos deles.
A mulher agora deveria ser virtuosa, pura, inocente e, como era detentora da sensibilidade, deveria proporcionar conforto e cuidado aos homens da sua família e a todos ao seu redor, além de ter que reprimir os impulsos sexuais naturais do ser. Sendo assim, é possível observar que a repressão não terminou com as mudanças sociais. Como na moral cristã, as mulheres ainda eram temidas, mas a forma de controle agora era diferente. É importante ressaltar que essa nova perspectiva sobre o grupo se dirigia às mulheres brancas. Enquanto eram vistas como deusas da afetividade, as mulheres negras eram consideradas o oposto. No entanto, por serem mulheres (usando a ideia de interseccionalidade), também se exigia delas pureza, esta era dificultada pelos próprios homens que direcionavam seus desejos reprimidos para elas. Eles não podiam fazer o mesmo com as mulheres brancas, pois isso agrediria a ideia de pureza.
Citando novamente o livro de hooks:
Enquanto os homens brancos idealizavam a mulheridade branca, assediavam e brutalizavam sexualmente as mulheres negras.[…] Como a mulher foi designada criadora do pecado sexual mulheres negras eram naturalmente vistas como a personificação do mal feminino e da luxúria. […], além de serem acusadas de desviar os homens brancos da pureza espiritual.
Assim, tanto para mulheres brancas quanto negras - com este último grupo enfrentando ainda mais dificuldades e diferentes tipos de estigmas - existe uma imposição da ideia de que elas devem se dedicar às áreas de cuidado familiar e ao lar para alcançar um nível espiritual do que seria ser mulher na sua mais pura essência. A partir disso, uma mulher passou a ser avaliada com base no comportamento de seus filhos, na limpeza e manutenção de sua casa e na maneira como seu marido é tratado quando chega em casa. Seguindo essa lógica, o papel da mulher estava fortemente ligado ao lar, ignorando sua individualidade, ambições e autocuidado. Teoricamente, uma mulher se tornaria completa e feliz ao se casar e ter filhos. Ser mãe era considerado uma dádiva e o objetivo final da sua existência, uma ideia que carrega herança cristã em relação à reprodução. Além disso, era esperado que ela fosse uma boa dona de casa.
A generalização nítida e a supressão das possibilidades na vida das mulheres foram estabelecidas e perpetuadas pela mídia. Nos comerciais de eletrodomésticos e artigos de limpeza, a mulher sempre era retratada como consumidora alvo, tanto nas rádios e banners quanto posteriormente com a invenção da televisão. O que se observou foi a criação da necessidade da mulher possuir peças que otimizassem seu dia-a-dia como dona de casa, que, conforme já mencionado, era o papel "ideal" para uma mulher de fato.
No entanto, a otimização desse tempo não visava a liberação das mulheres dos afazeres domésticos. Embora fossem de certa ajuda, o objetivo era aprimorar as tarefas para que pudessem passar rapidamente para a próxima ou dedicar tempo à criação dos filhos ou ao marido. Mesmo durante o tempo livre, o ideal seria que a mulher se dedicasse a atividades como costura e bordado, que contribuiriam para a sua formação como dona do lar. Nesse cenário o imaginário social se estabeleceu, a imagem da feminilidade foi associada a esses valores criados.
Naturalizou-se então a “fórmula” da felicidade da mulher que faz parte de uma família, os presentes perfeitos seriam aqueles que permitissem a ela ter tudo que sempre sonhou: uma casa limpa, preservada e ter mais tempo para se dedicar a família.
Atualmente, é possível perceber que essa visão não mudou totalmente, observa-se na maioria das datas comemorativas direcionadas às mulheres a conservação dessa ideia de feminilidade como sendo a única. A generalização da ideia de que a mulher se sente plena ao receber um eletrodoméstico ou um utensílio do lar, perpetua valores machistas e estereótipos de gênero que existem desde anos atrás. Essa representação que faz a ligação da mulheridade ao papel de dona de casa é um apagamento da diversidade de cada uma e repressão das ambições individuais.
O Dia das Mães é uma ocasião em que podemos observar claramente a persistência da herança machista. Até hoje, nessa época do ano, as marcas de eletrodomésticos recorrem a essa ideologia em seus comerciais. Além do que é frequentemente retratado na mídia, os discursos voltados para as mulheres mães tendem a ser extremamente estereotipados. Perpetuam ideias como a crença de que a única responsável pela criação dos filhos e pelas tarefas domésticas deve ser a mãe, que sua dedicação deve se concentrar principalmente na satisfação dos membros de sua família e nas exigências do lar, e que a valia de uma mulher se resume à sua habilidade de cuidar, limpar e cozinhar, sem contar a própria romantização da maternidade. Mesmo que existam mulheres que enxergam na maternidade um lugar de afeto e se veem inseridas nele, sua singularidade e existência não devem ser resumidas apenas por essa nuance.
É indiscutível que a luta das mulheres por direitos e por liberdade tenha avançado proporcionado mudanças significativas, mas até que nós como seres sociais, não nos posicionarmos mesmo que seja a partir de pequenas ações, como presentear uma mulher que é mãe sem atribuir a ela a construção social de que seu ápice e individualidade estão diretamente atrelados a sua posição dentro do núcleo familiar, a representação social da mulher em nosso inconsciente permanecerá a mesma da época citada acima. Uma mulher não está e nem pode ser resumida a sua experiência como mãe ou como participante da estrutura familiar.
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