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  • Adélia Farias e Alice Sousa

Quem é feita de luta e flui feito água preenche todos os espaços com força de mar

PERFIL | DEDIANE SOUZA

“Eu sou água, meu amor, eu vou invadir todos os espaços”.


Essa é Dediane Souza. Travesti, negra, 30 anos de idade e recém-formada em Comunicação Social - Jornalismo. Ocupa hoje um cargo público que carrega tanta imponência no nome quanto ela carrega em si: coordenadora adjunta na Coordenadoria da Diversidade Sexual da Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos da Prefeitura Municipal de Fortaleza.


Dediane é filha mais velha do terceiro casamento de dona Lindalva, agricultora e mãe de mais quatro. Foi dela que Dediane herdou o temperamento explosivo e toda essa força de água de mar. Precisava de toda aquela força da mãe para enfrentar a luta que viria pela frente. Luta da qual nunca fugiu. Pelo contrário. Perseguiu tanto que acabou se fundindo a ela e hoje andam entrelaçadas.


Dediane não existe sem luta. Viveu num lar manchado pela violência doméstica sofrida pela mãe e por relacionamentos abusivos, circunstâncias que acabaram fazendo Dediane abandonar a barra da saia da mãe e decidir viver sozinha, longe de casa. Dediane e dona Lindalva hoje estão distantes geograficamente por isso, mas nunca afetivamente. “Minha moça”, é como sua mãe lhe chama até hoje quando se falam e se visitam, mesmo que brevemente.


Nessa mudança, Dediane nasceu de novo. Descobriu o ativismo quando começou a morar sozinha em Fortaleza, na sua adolescência, e desde então não se enxergou mais fora dele. Ocupou todo espaço de luta e resistência que encontrou no seu caminho. Lutou pela família nova que ganhou na militância, pela família de sangue, por si mesma, pelo direito de existir. Muniu-se de todas as armas possíveis no caminho árduo que precisou trilhar, mas acabou descobrindo que a maior arma que possuía era a si mesma. Seu próprio corpo hoje é luta e resistência.


Com a ajuda da família que cultivou na militância, Dediane levou sua luta a São Paulo. Trabalhou lá por um ano, coordenando o Centro de Cidadania LGBT, órgão interno de políticas públicas LGBT durante a gestão municipal de Fernando Haddad (PT). Lá, Dediane-água irrigou projetos que se encontravam apenas no papel e os viu germinar e florescer. Depois de inundar todos os espaços que podia e colher todos os frutos que brotaram, voltou pra casa e conseguiu o tão desejado canudo de formatura.


Por causa da sua fusão com o ativismo e das marcas deixadas pelo abuso a que assistiu a mãe sofrer dos homens com quem se relacionava, Dediane nunca se permitiu dedicar-se a qualquer outra coisa que não fosse militância. Imergiu na luta. Adequou-se como pôde à solidão que essa plena entrega lhe trouxe. Desconhece amor romântico, não há espaço, não há tempo. A vida que leva não permite esse tipo de intervenção externa. A diversão existe, mas ninguém fica mais que algumas horas na sua casa. Aquele é o seu espaço e o medo de ele ser invadido e manchado pela violência a fez dar toque de recolher aos que entram ali. Os momentos de fragilidade e lágrimas são apenas isso: momentos. O medo que os tempos atuais causam acabaram fazendo com que esses momentos tenham se tornado mais frequentes do que o normal, mas sempre são apenas momentos.


Um banho e um batom a colocam de volta de pé em um estalar de dedos. Dediane precisa se manter de pé, inteira, entregue, por tudo que construiu e se tornou, por luta que é. As páginas seguintes contêm duas horas de total entrega de Dediane, que permitiu ser vista por dentro, com todo o sofrimento, vontade e força que lhe preenche. Dediane inundou tudo e todos com a história da sua trajetória, percorrida com a força da água que é. No fim delas, o que resta é a vontade de continuar acompanhando a história da moça de dona Lindalva, que sonha em ser professora para poder deixar de herança aos seus alunos o percurso de luta que construiu e com o qual se fundiu.




Entrevista com Dediane Souza em 11 de outubro de 2018, publicada na Revista Entrevista 40.


Alice – Dediane, você tinha falado na pré-entrevista que não existe uma Dediane fora do ativismo porque ela já nasceu dentro dele. Como o nosso objetivo aqui é aprofundar sobre a sua vida pessoal, a gente gostaria de saber que elementos da sua infância foram responsáveis por formar a Dediane atual, ativista…


Dediane – Eu sempre gosto primeiro dizer que vocês sejam bem-vindos a este espaço. Que aqui é a minha casa política, o GRAB, que é o Grupo de Resistência Asa Branca. Esse espaço é o espaço onde eu passei uma boa parte do meu ativismo e da minha vida política.

Eu vim pro GRAB no ano de 2005. No ano de 2005, eu fiz um curso de cabeleireiro do GRAB. Eu tinha 16 anos e, depois, de lá pra cá, eu nunca deixei o GRAB. Trabalhei aqui por um período de quase dez anos, entre duas rupturas: fui pra São Paulo e depois voltei pro GRAB; e quando eu fui pra Prefeitura (de Fortaleza) também pedi licença pro GRAB. Mas aqui é minha casa política e também a casa política de todas as pessoas que são contrárias a todo tipo de opressão. Que lutam por uma sociedade e por outro mundo possível. É essa a estrutura, que é a estrutura do GRAB.


Sejam todos bem-vindas e bem-vindos. Eu venho de uma família, que eu sempre digo, é uma família muito pobre do Sertão do Ceará, da cidade de Santana do Acaraú, que é da região norte do estado do Ceará. A minha mãe... Eu sou “o filho”, na verdade, entre aspas, mais velho do segundo casamento da minha mãe. Minha mãe teve dois casamentos. Desses dois casamentos, minha mãe teve três filhos no primeiro, que são meus irmãos mais velhos, e teve três no segundo casamento, eu sendo o mais velho desse segundo casamento.

Minha mãe separa do meu pai quando eu tinha mais ou menos sete anos. São as poucas lembranças que eu tenho muito nítidas. Quando minha mãe separou do meu pai, eu vou morar com ela, diferente de todos os meus irmão, porque minha irmã, que é a mais velha de todos lá em casa, já estava casada, então todo mundo morava na mesma rua. Meus irmãos mais novos e meus irmãos mais velhos ficaram todos na casa da minha irmã. Minha mãe, quando separou do meu pai, não tinha pra onde ir, então eu fui embora com a minha mãe. Eu disse: “Não largo minha mãe por nada!”. E fui embora com a minha mãe.


O que me faz ir pro ativismo são todos os contextos de desigualdade que eu sempre enfrentei na minha vida. Então, a desigualdade sempre foi muito presente no meu cotidiano, na minha infância. Que desigualdade era essa? Primeiro, eu nunca tive como esconder a minha identidade. Eu sempre fui uma criança viado. Eu, quando criança, fui proibida de me socializar, muitas vezes, com os meus colegas de sala, com meus primos, por conta desses trejeitos que eu já tinha, e isso me incomodava muito. Eu não poder me socializar com meus primos e nem poder me socializar com meus colegas de sala porque eu era diferente. Essa diferença, que eu não sabia o que era, ela sempre me tirou do convívio social. Então eu não compreendia o que era isso. Eu era uma criança, eu não compreendia o que era isso.

Eu escutei muito xingamento de “viado”, de “viadinho”, de “mariquinha”, de “fêmea e macho”, e eu não sabia o que era isso.

Quando eu descubro isso, quando eu descubro a minha identidade, eu descubro já nos movimentos sociais. Eu vou fazer ativismo no movimento de juventude. Eu não venho direto pro movimento LGBT. Eu vou fazer ativismo no movimento secundarista, no Ensino Médio.

No início do Ensino Médio, eu descubro o movimento estudantil e aí, com a descoberta desse movimento estudantil, eu descubro também a minha orientação sexual. Que, na verdade, eu achava que era orientação sexual. Eu achava que era um menino gay, mas que, na verdade, se autoafirmar “menino gay” pra mim não era suficiente. Tinha outra coisa aí, eu não me senti pertencente àquela identidade de menino gay. É quando eu descubro o Movimento de Juventude. Eu vou pra uma instituição chamada IJC (Instituto da Juventude Contemporânea) onde eu começo a discutir gênero e sexualidade, na pauta de juventude, e aí é onde eu vou compreender que existia outras possibilidades de identidade.


Eu cheguei no GRAB ainda menininho, nesse processo de transição, e eu sempre dizia que era “um jovem gay com tendência à travestilidade”. Mas, na verdade, eu já tinha essa identidade fixa, eu só não conseguia visualizar ela por conta de todas as questões que foram somatizadas sobre essa identidade do que é ser travesti. Por isso eu sempre digo que não existe a Dediane sem ser a Dediane política porque, na verdade, ela se autoafirma dentro dessa organização que é o GRAB. A segunda maior organização do Brasil em funcionamento que trabalha com as questões LGBT. Então não tinha mais como fugir dessa identidade, desse contexto.


Na minha infância, eu lembro muito desses contextos de violência, e aí era uma violência muito naturalizada. Por exemplo: eu era proibida de me socializar muitas vezes. Quando não era pelos meninos que não me aceitavam nos subgrupos, as meninas me aceitavam. Mas muito no campo de muitas vezes explorar. Explorar no campo de eu fazer todos os recados, eu acabando tendo uma função de me moldar ao espaço das meninas para ser aceita naquele grupo. Já que o grupo dos meninos jamais me aceitaria porque eles iam sofrer xingamentos se andassem comigo.



Adélia – Dediane, tu falou que seus pais se separaram quando você tinha sete anos. Qual foi o impacto psicológico que isso causou na sua vida? Como foi que isso te afetou?


Dediane – Hoje eu consigo refletir sobre essas questões muito do campo de dizer que a violência doméstica sempre foi muito presente na minha vida. Eu acredito que a minha mãe sempre foi muito à frente do tempo dela. Minha mãe não tolerou ninguém pegar no pulso dela. E a minha mãe sempre foi uma figura muito especial na minha vida.


Quando a minha mãe se separou do meu pai, eu lembro da briga, foi uma briga feia. Meu pai chegou em casa bêbado e aí minha mãe tava fazendo comida e aí foi um xingamento, uma coisa toda, e meu pai começou a quebrar as coisas dentro de casa. Aí minha mãe pegou um pau, quebrou tudo e disse: “Vou-me embora é hoje!”. Então, quando o meu pai perguntou “quem vai com ela?”... Porque minha mãe abandonou o lar, minha mãe abandonou a casa e eu fui embora com ela. Eu fui embora já com medo do que eu poderia sofrer sem ela, porque minha mãe sempre criou um processo de proteção. Na verdade, eu acho que ela sempre soube que tinha algo diferente comigo. Isso foi muito difícil, porque eu sempre fui muito apegada ao meu pai. Na verdade, até hoje, eu sou muito apegada ao meu pai. Dentro de uma relação de respeito, mas eu sempre digo que acabei construindo outras famílias que não é a família de sangue. Na verdade, eu acabei construindo uma família que é de amigos.


O GRAB, por exemplo, é uma grande família pra mim. Eu cheguei aqui quando eu tinha 16 anos de idade. Hoje eu tenho 30. Uma boa parte da minha vida eu passei aqui dentro. Fazendo ativismo, fazendo luta. Compreender que aquilo a que minha mãe tava resistindo era a violência. A violência familiar, a violência doméstica.. E isso pra mim, hoje, me dá muito orgulho da minha mãe não ter tolerado, em nenhum momento ter se colocado nessa situação de exploração. Minha mãe tem uma relação muito bacana com o meu pai hoje, não de hoje. Ela separou do meu pai, mas depois eles ficaram amigos por conta do meu pai ter contribuído muito no processo de educação e na manutenção dos meus três irmãos que não eram filhos dele. Meus três irmãos mais velhos, que não são filhos dele, têm uma referência muito grande nele. Inclusive eles moram na mesma rua. E aí minha mãe tem esse carinho pelo meu pai. E meu pai nunca casou, ele espera minha mãe ainda, até hoje. Por aí você tira. Eu nunca tive isso na minha cabeça como trauma. Acho que eu nunca tive trauma sobre isso. Até mesmo porque, quando eu tive a primeira oportunidade, eu saí de casa. Eu não fui expulsa, eu saí. Eu saí porque eu acredito que, como eu não vou construir uma família, eu não vou adotar criança, eu não quero me casar, eu acredito que o mundo é minha família e o ativismo é meu carma.


Eu acho que é isso que eu escolhi pra minha vida. Eu acho que é isso que eu vou fazer da minha vida.


Então eu não faço interferência na casa da minha mãe hoje. Eu vou na casa da minha mãe, talvez, duas vezes ao ano, no máximo. Depois de ter passado seis anos pisar lá. Por conta da vida, por conta do ativismo, por conta da prioridade, por conta das questões. Isso não quer dizer que eu deixe de amar minha mãe, que eu não ame meus irmãos e que eu não ame meu pai. Eu acredito que eu só conseguiria mudar a minha vida se eu saísse daquele espaço comum. Se eu saísse daquela estrutura. Porque, se eu não saísse daquela estrutura, eu seria só mais um viado. Só viado. Eu não conseguiria ser a Dediane que eu sou, porque eu teria ali toda uma estrutura de acomodação. Eu digo isso porque todos os meus irmãos ficaram no mesmo lugar e estão no mesmo lugar até hoje. E o mundo me deu outras oportunidades e outras possibilidades.

Por exemplo, eu, com todas as dificuldades do mundo, com o preconceito, com a violência, com a discriminação que eu fui sofrendo, eu fui a única pessoa da minha família de seis irmãos que conseguiu concluir o ensino superior. Tive acesso ao ensino superior. A minha irmã mais velha não conseguiu terminar o ensino fundamental. O meu outro irmão não conseguiu terminar o ensino fundamental. (Só) meu irmão mais novo que conseguiu terminar o ensino médio. Por conta dessas questões. Eu acredito que esse distanciamento se fez necessário por conta disso. Eu fui buscar outras possibilidades.



Alice – Você falou sobre a relação com o seu pai nessa separação. Como é o seu relacionamento com ele atualmente? Como foi a presença dele na sua formação?


Dediane – Até, eu acho que 14, 15 anos, eu tinha contato, de visitar o meu pai, de ter contato com meu pai. Até porque, todas as festas de fim de ano eu ia pra casa da minha tia, que é irmã do meu pai. Morava vizinho ao meu pai. Eu sempre tive esse contato, essa referência. Meu pai acabou se tornando alcoólatra. Meu pai é alcoólatra e hoje eu acabei me distanciando, não só do meu pai, mas meu pai, minhas primas, minhas tias. Eu acabei me distanciando por conta desse ativismo. Esse ativismo pede muito tempo.


Aqui, no GRAB, por exemplo, eu coordenei oito paradas pela diversidade sexual. Eu conheci quase todas as capitais brasileiras no ativismo, no movimento de travestis e transexuais. Desde os 19 anos, no momento em que eu me assumo travesti. Eu tenho uma referência muito grande do eu pai, na perspectiva da gente jogar sinuca e tomar um gole de cachaça, mas não é uma figura que eu tenho, por exemplo, de ligar pra ele todos os dias. Eu encontro o meu pai quando vou na casa da minha irmã. Eu não vou atrás do meu pai, eu vou visitar minha irmã.


Eu sinto muita falta do meu pai na seguinte perspectiva: eu sempre acreditei que o meu pai deixou de ser meu pai a partir do momento em que ele se separou da minha mãe, porque ele não quis mais nenhuma obrigação. Meu pai nunca pagou pensão pra gente. Minha mãe que tinha que levantar cedíssimo de madrugada. Minha mãe trabalhou muito tempo na Ceasa (Central de Abastecimento, na cidade de Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza). Minha mãe acordava três da manhã pra fazer lanche e ia vender lanche na Ceasa pra sustentar eu e meus irmãos, que depois voltaram. Meus irmãos ficaram na minha irmã até minha mãe arrumar um lugar e depois foram voltando aos poucos. De acordo como minha mãe ia tendo estrutura. Eu fui a única que nunca larguei o pé. Eu nunca deixei o rabo da saia da minha mãe. Mas da relação com meu pai eu não sei dizer se existe uma referência, “ai, eu tenho um pai e eu tenho muito carinho por ele”.


Tenho muito carinho, mas, na verdade, acredito que ele se eximiu dessa paternidade. Dessa mesma forma, eu fui me eximindo dessa corresponsabilidade, dessa filiação com meu pai. Eu tenho um carinho muito grande. Quando eu encontro, eu dou a bênção e tudo, mas não é uma figura que anda na minha casa, eu não ando na casa dele. A gente não tem nenhum estremecimento. A gente não teve nenhuma briga, mas eu acho que nas entrelinhas eu fui abandonada junto com meus irmãos pelo meu pai. Depois da separação com minha mãe. A gente teve o laço porque mora na mesma rua de todo mundo. Mas, se meu pai morasse no sertão da minha mãe, por exemplo, eu só encontraria ele quando fosse visitar minha mãe. Eu não saio de casa para visitar o meu pai.



Marina – Tu disse que foi proibida de socializar com as outras crianças, com teus primos, com amigos do colégio. O que te proibia? Como era essa relação com as outras crianças?


Dediane – Primeiro: o que me proibia era eu mesma. Eu não era aceita nos subgrupos porque eu nunca consegui fugir... Eu nunca fui másculo. Eu sempre fui menina, mas como é que eu era menina e eu era Dedé? Estranho isso. Por exemplo, eu andava com a minha mãe quando eu tinha oito, nove anos... Eu andava com minha mãe no supermercado e as pessoas diziam: “Que menina bonita!”. Porque eu tinha cabelo longo. Eu não deixava cortar meu cabelo. E minha mãe respondia: “Não, é o meu rapaz!”. E eu (nesse momento Dediane olha de soslaio e faz uma cara de quem não gostava quando sua mãe dizia aquilo).


Eu acho que tinha, era muito visível que tinha alguma coisa diferente em mim e essa diferença não era aceita em alguns espaços. Por que não era aceita em alguns espaços? Porque, se eu me socializasse com os meninos, brincando com os meninos, os outros meninos iriam comentar que os outros meninos tinham algum tipo de relação comigo. E ter algum tipo de relação comigo era proibido. Essa demarcação já era muito nítida. Por exemplo, eu tenho um primo que é da minha idade. Acho que são 4 primos e a gente tem a mesma idade. Estudamos juntos até a quarta série. A gente tem várias histórias juntos. Meu primo não consegue olhar no meu olho e me reconhecer como Dediane. A minha tia uma vez, foi recente... E ela é eleitora do Bolsonaro... Um dia desses eu tava na minha tia e minha tia olhou pra mim e disse: “Tu viu a tua prima?”. E ele respondeu: “Isso não é a minha prima, é o meu primo”. Aí eu olhei pra cara dele e falei: “Idiota!”.


Porque, na verdade, se nega a minha existência, nega a minha sociabilidade com eles. Então foi uma criança que a gente foi crescendo juntos e, conforme o tempo ia passando, a minha feminilidade e eu ia descobrindo mesmo que eu não ia me podar disso. Minha mãe sempre foi muito tranquila com isso, ela só dizia “vai ter a sua hora, vai ter a sua hora...”. Eu acabei perdendo essas referências. Eu tenho contato de dizer “oi, tudo bem?”, mas não é de ir pra casa deles nem eles na minha. E também não quero eles na minha porta. Porque não reconhece a minha identidade enquanto sujeito. Se não reconhece a minha identidade, então, de alguma forma, não me reconhece. Era isso. Isso era muito nítido no cotidiano.


Eu tenho uma cicatriz aqui na testa que foi de uma briga com o meu primo, um dos meus primos. A gente tava jogando de bila (como é chamada “bola de gude“ no Ceará) na rua, brincando de amarelinha, de elástico, tarara tarara tarara, porque era uma rua onde todo mundo morava. Ou quando eu ia pra lá, eu ficava na casa da minha tia que era vizinha à casa da minha mãe e do meu pai. Aí, a gente brincando na calçada e tarara, um menino — meu primo — gritou: “Viaaaado”. Eu disse: “Não, eu não sou viado”. Porque eu não sabia de nada disso. Quando eu penso que não, vem a pedra na minha testa. Eu voltei com a pedra também e dei outro corte nele. Hoje, ele me chama de Dedi. Mas esse (primo), dentro dos padrões sociais, já fugiu de todas as normas. Já foi preso, é usuário de droga. Ele diz: “Dedi, olha aí sua testa”. Aí eu digo: “Tá aqui o que tu fez em mim”. Aí ele diz: “Pois a gente tá cruzado”. Então, não é do campo do ”ah, Dediane, tu sofreu muita violência na infância”. Não. A violência que eu sofri foi do campo da negação dessa socialização com meus primos. Em compensação, eu vou ter o momento que eu vou ser muito feliz, de lembrar da infância. Foi o momento onde eu tinha 13 anos e minha mãe resolveu ir embora pro sertão. Foi quando eu descobri que eu precisava fazer coisas com as pessoas. Precisava fazer ativismo.


E aí eu fui fazer teatro, fui fazer rádio comunitária. Aí foi quando eu descobri que eu tinha esse talento, e aí comecei a me socializar com outros grupos de pessoas que tinham essas afinidades também, mas muito viado. Eu já era muito viadinho, mas não sabia de nada disso. Quando eu completo 15 anos, que já tava tudo maravilhoso, a gente morava do lado de uma lagoa, em tinha as vizinhas todas lá do sertão. A gente ia pra lagoa lavar roupa, lavar louça. Eu sempre tive esses papéis de serviço doméstico. Lá em casa todo mundo fazia serviço doméstico. Minha mãe nunca deixou ninguém sem fazer nada. Meus irmãos mais velhos, eu, meus irmãos mais novos, todos sabem fazer TUDO! Lavar roupa, lavar louça, fazer comida, tudo. A gente sabe fazer tudo. Pescar, a gente sabe fazer rede, fazer chapéu, minha mãe sempre disse que a gente precisava ter isso. Minha mãe sempre tentou conciliar a escola, porque ela sempre disse: “A única coisa que eu posso dar pra vocês é o estudo”. E os meus irmãos sempre questionavam isso, porque, na verdade, minha mãe nunca pagou uma escola.


Como é que minha mãe vai dar o estudo? Mas, na verdade, minha mãe não deixava a gente trabalhar pra gente poder estudar. A gente contribuía com os serviços domésticos. A gente sempre contribuiu com os serviços domésticos. Lá na minha cidade, a gente fazia chapéu de palha. Isso é uma economia que gira na minha cidade sobre isso (Santana do Acaraú é uma das cidades cearenses onde é intensa a cultura da palha de carnaúba). E a gente tinha uma meta, eu e os meus irmãos. A gente tinha a meta de fazer, cada um, de sete a dez capas, que é a peça completa do chapéu. Então, a gente sempre fez isso. A gente sempre ia pro açude pescar, depois minha mãe ia pro açude pescar com meu padrasto. A gente ia pro açude lavar roupa, lavar louça... Cuidava de tudo, porque a gente tinha que contribuir com isso. E eu acho que foi um momento muito importante da minha infância, porque foi o momento onde eu descobri mesmo. Descobri minha sexualidade.


Me chamar de viadinho já não me afetava mais porque eu já sabia que eu era gay. E aí, no decorrer do tempo, eu fui percebendo também que eu não era gay. Digo, por exemplo, que hoje dizem que a gente vai ensinar o filho dos outros a ser viado, mas eu nunca tive uma referência disso na minha infância! Eu vim ter contato com travesti depois que eu voltei pro sertão, que eu vim ver uma travesti. Que eu vim ter contato com uma travesti.


Eu vi Janaina Dutra (ativista cearense, travesti, reconhecida por sua militância no movimento LGBT; foi vice-presidente do GRAB em quatro mandatos; faleceu em 2004, aos 43 anos, vítima de câncer pulmonar) na televisão quando eu tinha, acho que uns 13, 14 anos. E minha mãe sempre foi muito de soltar uma, ela solta assim: “Ó-pá!”. Ela solta e deixa você pegar. E minha mãe disse: “Olha como essa moça é inteligente”. E eu disse: “Mãe, ela é inteligente e eu quero ser que nem ela quando eu crescer”. Aí ela só olhou assim, mas ficava calada. E essa referência foi muito bacana. Eu só sou hoje o que eu sou por conta da minha mãe. É uma figuraça!



Luís – E como foi sair da barra da saia da tua mãe?


Dediane – Pelos mesmos problemas que a minha mãe saiu da barra do meu pai: as violências domésticas. Minha mãe se casou com o meu padrasto e, quando eu ia pra minha tia, minhas vizinhas relatavam que o meu padrasto espancava minha mãe. Um dia eu cheguei pra minha mãe e perguntei, ela não quis assumir, então eu disse pra ela: “A senhora vai continuar sua vida e eu vou viver a minha. Vou atrás de viver a minha vida porque eu não consigo viver sob o mesmo teto de uma pessoa que todo mundo comenta que te espanca. Eu não consigo viver dessa forma”. E a minha mãe super-entendeu.


Foi quando eu saí de casa. Tava com 15 pra 16 anos, tava completando 16, 17 anos. Eu já tava conhecendo o GRAB. Eu já tava no “mei do mundo” fazendo zuada e, pra mim, aquilo (violência doméstica) era um absurdo. Então, todos os conflitos que eu tive com a minha mãe foram por conta dessa relação com meu padrasto. Eu sempre digo: eu não conseguiria voltar pra casa da minha mãe... Se eu não conseguia voltar pra casa da minha mãe pra construir uma relação bacana, de companheirismo, como eu tinha quando ela era casada com meu pai, porque eu já tava querendo ir pro mundo, eu não tinha porque também concordar com aquilo.


Eu fui pro mundo mesmo. Nunca mais voltei pra casa. Eu não consigo passar dois dias lá com a minha mãe, porque a presença do meu padrasto me incomoda muito, assim como a presença de qualquer homem na minha casa me incomoda muito. Acho que esse foi o trauma que eu fiquei pra minha vida. Me incomoda muito! Mexe comigo, por isso que eu digo que eu tenho certeza que não vou me casar nunca, porque eu não suporto a presença masculina, de um homem que tem alguma relação afetiva e sexual comigo dentro da minha casa. Não consigo.



Adélia – Você já se apaixonou por alguém?


Dediane – Eu não sei o que é amor, não, mulher! Amor, amor, afetivo e sexual, não. Eu sou do outro campo. Às vezes eu acho que é egoísmo, mas a gente vai trabalhar isso, né? Eu já tive uma paixão, eu acho que foi uma paixão, mas foi muito do campo do platônico, do que eu criei de paixão e que também não foi legal. Não foi algo saudável pra mim e foi se somando aos traumas. Eu fiz terapia pra tentar encaminhar, mas depois eu fui descobrindo que não era amor. Na verdade, era uma referência que eu tinha de uma figura muito bacana, mas que não tinha... Não teria nenhuma possibilidade. Então a gente acaba se traumatizando com isso. Eu nunca tive namorado, por exemplo. “Ai, Dediane, mas é porque não teve oportunidade?”. Não sei. Não sei se apareceu alguém ou se eu perdi ou se vai aparecer, não sei também, mas dizer que eu procuro um namorado eu não procuro.



Adélia – Mas por que disso? Por que que tu não procura um namorado?


Dediane – Porque, primeiro, as pessoas com que me relaciono sexualmente, hoje, são as pessoas, os meus contatos aqui, elas jamais me assumiriam. E me assumiriam que estou dizendo é que, na verdade, eu que não assumiria, não são eles que têm que me assumir. Eu que tenho que assumir, na verdade. Não conseguiria me apresentar num almoço de domingo na casa dos pais. E eu não quero uma relação clandestina. Não quero nenhuma relação clandestina. Se, um dia, alguém topar um casamento comigo, vai ser um casamento muito claro e muito público, não será um casamento de relação abusiva. Eu não topo nenhuma relação abusiva. É o que mais me incomoda. É qualquer relação de abuso, qualquer relação de exploração. Isso me incomoda MUITO! É por isso que, com as figuras que eu saio, não rolaria nada além de sexo, além de 45 minutos.



Marina – Mas você não teve nenhuma desilusão amorosa?


Dediane – Não! Porque eu nunca tive nenhum amor. Eu tive essa paixão platônica. Só. Marina – Mas foi uma desilusão, não?


Dediane – Não, porque não foi amor, não foi recíproco. A gente não teve nenhuma relação. Eu passei um ano projetando um mundo sobre essa figura, mas a gente nunca teve nada. Ele era meu amigo. Só.



Letícia – Dediane, eu queria voltar um pouquinho pro teu pai. Tu disse que a tua mãe criou um grande carinho por ele porque ele ajudou a criar os filhos que não eram dele, mas aí ele teve esse abandono de obrigação quando se separou. Como foi pra você receber esse abandono, quando você sabia que ele já tinha ajudado os seus irmãos que não eram filhos dele?


Dediane – Naquele período, eu não conseguia fazer essa definição, então, como eu sempre fui muito apaixonada pela minha mãe, eu nunca conseguia ver isso. Pra mim, eu estar com a minha mãe era suficiente. Quando minha mãe se casou com o meu padrasto, pra mim, era um absurdo. Era um absurdo o casamento da minha mãe com o meu padrasto.


Hoje eu descobri que... Hoje não, faz uns quatro anos. Eu descobri que eu tinha um ciúme muito grande da minha mãe. E aí, pra não alimentar esse ciúme, não sei em que perspectiva isso era, mas acho que era dessa proteção, eu tinha muitas vezes que ignorar o meu pai. Eu nunca acusei o meu pai de abandono. Eu nunca acusei minha mãe de ter deixado o meu pai e nunca puni minha mãe por isso. Eu tenho um irmão mais velho do que eu que sempre puniu a minha mãe por ter abandonado a casa, porque, na verdade, minha mãe que foi embora.


Minha mãe podia ter dado uma surra no meu pai e ter mandado ele embora, mas não, ela disse: “Eu não quero conversa com nada. Eu vou embora e é hoje”. E eu disse: “Mãe, a senhora vai pra onde?”. E ela respondia: “Não se preocupe, não”. Minha mãe não sabe ler, não sabia andar em Fortaleza, e a gente morava ali, no Maracanaú, e a minha mãe disse: “Vamos ver, vamo lá pra sua tia”. E ficamos na minha tia três dias. Depois, minha mãe arrumou uma casa e nós fomos morar juntas. De acordo com o que ela ia conseguindo aos poucos, meus irmãos foram voltando, inclusive meus dois irmãos mais novos, que ficaram com a minha irmã.



Rodrigo – Dediane, tu falou que tua casa é o mundo e tu veio do interior, foi pra Maracanaú, depois veio pra Fortaleza. Tu acha que esse teu olhar sobre essa questão vem disso, dessa tua vivência, de mudar de casa muitas vezes?


Dediane – Eu acho que eu tenho isso da minha mãe também. Isso é muito da minha mãe, porque na verdade a gente… Se vocês verem meu histórico escolar, vocês vão bolar de rir, eu vou estar dois anos numa escola, dois anos noutra escola, dois anos noutra escola, né. É porque vai ter esse processo mesmo de sobrevivência da minha mãe.


Minha mãe, por exemplo, quando separou do meu pai, a gente vem pra cá, pra Fortaleza, depois a gente volta e vai morar no Maracanaú e vai morar no Pajuçara (distrito de Maracanaú), depois a minha mãe sai de lá e a gente vai morar na Rosalina (comunidade no bairro Parque Dois Irmãos, em Fortaleza). A gente morou um bom tempo na Rosalina. Depois a minha mãe volta pro Sertão. Quando minha mãe volta do Sertão, minha mãe volta pro Mondubim (bairro de Fortaleza).


Minha mãe sempre foi muito disso, então eu sempre fui muito desenrolada. Por exemplo, eu não queria abandonar a escola em alguns momentos, então eu morava no Mondubim e estudava no José Walter (bairro vizinho ao Mondubim). Ou eu morava na Rosalina e estudava, por exemplo, lá na Serrinha. Então, isso sempre foi muito comum, essa coisa toda. Eu aprendi a andar de ônibus muito cedo. Por exemplo, a gente morava na Rosalina, pra vocês terem uma noção, eu acho que eu tinha 11, 12 anos. Os meus dois irmãos pequenos, era um segurando aqui e outro segurando aqui. A gente saía da Rosalina e fazia curso no ABC da Serrinha (projeto social mantido pelo Centro de Formação e Inclusão Social Nossa Senhora de Fátima, no bairro Serrinha, em Fortaleza).


Tu imagina sair da Rosalina pro ABC da Serrinha. Todos os dias a gente ia, eu mais meus dois irmãos. Minha mãe ia trabalhar. Quando minha mãe saía, (eu) pegava meus irmãos, entrava no busão e ia simbora. Eu sempre fui muito desenrolada, conhecer o mundo pra mim é algo fantástico. Eu tô aqui hoje, morando aqui, em Fortaleza, aqui na Maraponga (bairro na região sul da cidade). Por que que eu tô morando hoje aqui na Maraponga: eu morei um ano e meio em São Paulo, na gestão do (Fernando) Haddad (advogado e professor universitário filiado ao PT; ex-prefeito de São Paulo de 2013 a 2016; candidato à Presidência da República e 2018). Eu coordenei a rede de proteção e promoção da cidadania LGBT da cidade de São Paulo. Quando eu voltei de São Paulo, eu voltei muito mal, voltei adoecida psicologicamente porque São Paulo enlouquece as pessoas.


Então eu voltei supermal de São Paulo e, quando eu voltei, eu não sabia onde morar. Eu disse: “Gente, pra onde eu vou?”. Cheguei nesse aeroporto de mala e cuia sem saber pra onde eu ia. E aí foi o momento que eu disse: “Eu preciso criar uma raiz em algum lugar”. Foi quando eu financiei um apartamento aqui, em Fortaleza. Então hoje eu moro num lugar que minimamente, se eu for pro mundo, pra algum lugar, eu tenho pra onde voltar. Mas isso três anos atrás não era possível, porque na verdade a minha mãe mora no Sertão, meus irmãos moram todos no Maracanaú, mas eu não durmo lá, não sou louca de dormir lá porque eu não tenho essa intimidade com os meus irmãos, de dormir lá. Eu vou lá, almoço, fico, fico um pouquinho e depois vou pra minha casa. Nunca dormi.

Dormi na minha infância. E morei com uns amigos aqui do (bairro) Passaré, mas meus amigos todos tinham resolvido a vida. Um (amigo) tinha passado num concurso na UFCG (Universidade Federal de Campina Grande), em Campina Grande (cidade da Paraíba); e o outro tava coordenando um curso em Sobral (cidade na região norte do Ceará), um curso de Engenharia em Sobral.


Então, era a minha casa, era o que eu tinha mais próximo de casa. Era desses meus dois amigos, mas eles tinham ido embora. Então uma amiga minha, Luizete, disse: “Dedi, tu vai lá pra casa, tu fica lá em casa um tempo”. Eu fiquei no (bairro) Conjunto Esperança por três meses até receber o apartamento, mas antes eu não tinha lugar pra ir. Tipo assim, nunca me imaginei indo pro Sertão, muito menos indo pra casa dos meus parentaral lá no Maracanaú, e sim meus amigos. Por isso que eu digo: a referência sempre foi essa, a referência das amizades que eu fui construindo.



Adélia – Tu morou por um ano com o Robério, né, o pai de santo.


Dediane – Isso, isso foi quando eu voltei do Sertão, foi nesse primeiro momento onde eu saí de casa. Eu tive essa conversa com a minha mãe de sair de casa, fiquei, acho que uns dois meses, com um amiga que morava na mesma rua, Ana, muito querida, que partiu. E aí tinha Clédio. Clédio era secretário da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS no Ceará (cuja sigla é RNP). Que Chico Pedrosa, que hoje é presidente do GRAB, era presidente da RNP, nesse período.


Clédio fazia um trabalho de educador na RNP, distribuía preservativos, lubrificante, fazia esse trabalho. E Clédio já dizia que eu era menina, mas eu dizia que não. Aí Clédio disse: “Mulher, eu vou lhe levar acolá”. E eu disse: “Eu sou mulher não!”. E ele: “Vamo!”. E me levou num bairro vizinho do Mondubim, aqui, e o (bairro) Arvoredo era lá. Quando chegou lá, eu fiquei encantada por aquilo. Era uma roda de candomblé. Fiquei encantada, encantada, encantada. E aí foi quando Clédio revelou pra mim a vivência com HIV. Ele me disse: “Sabia que a gente vive com AIDS?”. E eu já tinha escutado na minha infância que viado morria com AIDS ou assassinado. E eu tinha acabado de sair de casa, fiquei meio em choque. Aí foi quando o Robério disse: “Fique aqui um tempo”. Aí fiquei com Robério. Num contei pipoca (decidiu de imediato), eu disse: “É aqui que eu vou ficar”. E, ao mesmo tempo, foi quando eu fui pro IJC (Instituto de Juventude Contemporânea).


Esse período foi quando o IJC tava com um curso, um projeto lá, chamado Conviva, que era pra pessoas que convivem e vivem com HIV/AIDS, pra jovens. Então eu fui pra esse projeto, precisava descobrir o que era isso, o que era essa história de viver com HIV, que contextos eram esse. Então foi quando eu me apaixonei mais uma vez por essa história dos movimentos sociais. Então eu fui pro IJC nesse período e do IJC eu só saí quando eu vim pro GRAB. Eu fiz todos os projetos do IJC num período de dois anos, desde o Primeiro Emprego, do Governo Federal, CLJ (Curso de Liderança Juvenil), que é um projeto de liderança juvenil, essa coisa toda. E eu já era presidente do grêmio da minha escola, então eu já tava fazendo tudo. E aí é quando eu descubro o GRAB, também através do Clédio, porque o Clédio ficou doente e eu acabei fazendo as áreas dele na distribuição de preservativo, porque eu já sabia quais eram as áreas que o Clédio fazia, porque eu acompanhava ele nessas áreas. E, quando eu saio da casa do Pai Robério, eu vou morar com o Clédio. Eu alugo uma casa, Clédio tava morando em Aracati (cidade no litoral leste cearense), aí Clédio ficou doente, voltou pra Fortaleza e disse: “Mulher, eu vou ficar aqui uma semana”.


Ficou comigo três anos e só saiu lá de casa uma semana antes de morrer. Então, é essa a minha família, são as pessoas com que eu fui construindo a relação direta que eu tive. Claro, com total sanidade de compreender quais os meus laços sanguíneos, quem são meus irmãos. A minha mãe, por exemplo, a gente se fala uma vez no mês, ela me liga uma vez no mês, ou ela me liga pra falar “tô chegando aí amanhã”. Ela já me diz: “Eu vou te ver?”. Aí eu digo: “Mulher, eu não sei, não, tô querendo viajar”. E ela diz: “Pois me diga”. E eu: “Mas eu já deixei o dinheiro da sua passagem com a minha irmã”. Porque eu fui na minha irmã semana passada, então eu já deixei o dinheiro da passagem da minha mãe pra garantir que ela venha e volte, porque aqui tem um tio meu que tá preso, e ela vem visitar, a cada três meses ela vem pra ir lá. Então eu venho de um lugar onde eu sempre fui muito satisfeita em todos os contextos. Pra mim, era um absurdo, por exemplo, a minha mãe morrer de trabalhar pra dar conta de um monte de menino que não era obrigação só dela, então eu acabei assumindo esse papel também de ajudar a minha mãe. Então a minha mãe vendia bolo e tapioca, e ela acordava às três da manhã pra ir pra Ceasa. E, antes de eu dormir, eu fazia os bolos com a minha mãe.


Aprendi a cozinhar, eu cozinho divinamente bem, faço bolo de todas as espécies do mundo que você puder imaginar. E era muito engraçado... Quando eu tava na minha tia, minha mãe dizia: “Não vendi nenhum bolo hoje”. E eu disse: “Por quê?”. “Porque os bolos não ficaram bom”. Eu dizia: “Mãe, a senhora desaprendeu a fazer bolo”. E ela: “Eu não sei o que tu faz nesses bolo que o pessoal só gosta dos teus bolos”. Então, todo dia antes de eu dormir, eu tinha que deixar os bolos prontos, molhar goma. Então eu sempre ajudei minha mãe. E eu sempre tive meu dinheiro, porque eu sempre vendia (produtos da) Avon, vendia Natura, fazia a unha do povo, sempre fui muito desenrolada. E isso também era muito da minha mãe. Minha mãe olhava pra mim e dizia: “Tu tem dinheiro?”. E eu dizia: “Tenho”. Aí ela: “Me dá dez (reais) aí”. Aí eu digo: “Cadê o dinheiro da senhora?”. E ela dizia: “Eu não te dei ontem todo o meu dinheiro?”. Porque eu administrava também o dinheiro da minha mãe.


Como eu ficava em casa e minha mãe chegava meio-dia mais ou menos, meus irmãos já tinham voltado da escola, o almoço já tava feito e minha mãe deixava o dinheiro pra eu comprar a matéria-prima do dia seguinte. Então quem administrava o dinheiro da minha mãe era eu, e isso eu com 14, 15 anos, sempre foi assim. E quando minha mãe foi morar no interior, minha mãe tinha um roçado, então eu também fazia isso, porque eu sempre tive medo de passar fome, então eu sempre contribuí e eu também achava que eu tinha que dá um desconto pra minha mãe, porque ela trabalhava muito. Inclusive meus irmãos mais novos sempre trabalharam. Na primeira oportunidade que tiveram de trabalhar, foram trabalhar. E aí tinha a Ceasa, né, todo mundo trabalhava na Ceasa. Meu pai trabalhava lá há muito tempo, meu cunhado, minhas tias, meus tios... Então meus irmãos iam pra ser ajudante na Ceasa, e tão até hoje trabalhando na Ceasa. Tem um que é caminhoneiro e um que trabalha na Ceasa e esse irmão quer fazer Culinária, então ele fazia umas cocadas maravilhosas, ele vende inclusive nas Andréas, na Bica das Andréas (parque balneário no centro da cidade de Pacatuba, na Região Metropolitana de Fortaleza). Ele vende em torno de 300 cocadas por fim de semana. Ele trabalha a semana todinha na Ceasa, no fim de semana ele mesmo senta na beira do fogareiro aqui, raspando coco, e tem cocada de todos os sabores: maracujá, abacaxi, tudo. E ele vende no comércio todo lá onde ele mora e ainda vai pro parque das Andréas no fim de semana.


A gente sempre foi criado com muita independência. A minha mãe, por exemplo, é sempre muito preocupada comigo no contexto das violências, porque ela entende que não tem mais como eu me esconder em lugar nenhum, porque a verdade tá aqui, não precisa de bandeira de arco-íris pra sair na rua e o povo ver que eu sou viado, é só elas perceberem, as pessoas já vão ver que tem algo minimamente diferente em mim quando eu abro a boca e começo a falar, porque é muita articulação, é muita mão, é muito cabelo, então sempre foi assim. Então conviver com a desigualdade social, o contexto de violência, pra mim, era muito doloroso, e eu sempre disse: “Eu não quero isso pra minha vida, eu não quero viver a mesma vida que minha mãe tem”.



Felipe – Pelo que você fala, parece que a sua relação com a sua mãe era muito próxima, né? O que eu queria saber é que você falou que, por causa da militância, você se distanciou...


Dediane – Ainda é muito próxima, mas na medida do possível das relações. Eu acabei me distanciando, nem religião eu tenho mais. Por exemplo, eu gosto muito do Candomblé, mas eu não tenho nenhuma casa de candomblé que eu frequente. Porque eu tenho obrigações, eu não tenho como ter obrigações a mais das obrigações que eu já tenho.



Felipe – Você sente falta da sua relação com a sua mãe, da sua proximidade?


Dediane – Meu grande sonho é que minha mãe venha morar comigo junto com meu sobrinho, mas a minha mãe não larga meu padrasto. E eu não quero ele nem na minha calçada. Ele é uma pessoa que não faz bem pra mim. Ele aflora todos os meus instintos de uma pessoa não boa. Então eu não conseguiria conviver com o meu padrasto.



Adélia – E com a religião, tu sente falta dessa relação que tu tinha quando tu morava com o Robério?


Dediane – Não, eu acabei criando minhas estratégias de cultuar os meus deuses, eu mesma faço as minhas macumbas em casa, eu tenho minhas coisas, tenho um altarzinho.


Adélia – Então tu é do Candomblé ainda?


Dediane – Não, porque, na verdade, quando a gente é do Candomblé, a gente tem um conjunto de obrigações, um conjunto de assentos, a gente tem a iniciação, então eu iniciei o Candomblé e abandonei. O que eu faço hoje, muitas vezes, é dentro do campo de limpeza espiritual. Eu consigo fazer porque, como eu morei quase dois anos com o Robério, eu aprendi a fazer tudo isso. E eu sempre fui, ó: você só me ensina uma coisa uma vez, querida.



Cézar – Você disse que sempre foi desenrolada, né. Também sempre foi carismática, comunicativa, ou houve uma mudança no seu temperamento depois que você achou sua identidade?


Dediane – Eu acho que hoje eu sou mais carrancuda, eu era mais dada. Acho que, por conta mesmo da proteção, às vezes eu acho que eu sou muito carrancuda, às vezes até mesmo antissocial. Mas é por conta mesmo da sobrevivência, né. Eu era muito mais carismática. Tô dizendo que eu vendia tudo, menino, eu vendo até uma casa pegando fogo. E isso foi muito da minha mãe. Quando eu vim pro GRAB, eu queria deixar alguma coisa pra minha mãe, pra ela conseguir sair da Ceasa, esse era meu grande sonho, sempre foi meu sonho que minha mãe saísse desse trabalho que envelheceu ela. Minha mãe tem a pele muito estragada do sol, que ela trabalhava no sol, dormia muito pouco, então eu sempre tive essa preocupação.


Minha mãe costura, mas ela não costura qualquer coisa, ela costura o que ela quer. Então eu e minha irmã mais velha, a gente começou a comprar maquinas industriais pra minha mãe. Ela tem cinco máquinas industriais. Então hoje ela consegue sobreviver, ela mais o meu padrasto e meu sobrinho. Então ela costura, remenda uma roupa. Aí, quando pergunto “mãe, e aí, como é que tá as costuras?”, ela: “Ai, tem umas coisas tão chatas que aquelas mulher trouxe, ô mulher chata, trouxeram aqui um monte de peça velha que dá é pro lixo e eu vou ter que consertar isso”. Aí eu digo: “Mãe, a senhora tava dizendo nesse instante que não tinha dinheiro”. E ela: “Tu sabe, né?”. E eu digo: “Sei, a senhora deve ter dinheiro escondido, a senhora esconde dinheiro”. Aí ela: “Não, não, não, eu vou já ganhar um dinheirinho”. Aí pega as roupas velhas que a mulher deixou lá, que ela nunca quis arrumar, nesse dia ela senta na máquina e começa reclamando: “Isso lá presta”. E eu digo: “Mãe, mas a senhora não tem que escolher o que a senhora tem que fazer”. E ela diz: “Não, não, quando ela vier aqui eu vou dizer ‘mulher, não traga mais essas coisas pra eu consertar, não’”.



Luís – Qual o nome da tua mãe?


Dediane – Lindalva. Dona Lindalva.



Letícia – Você disse que antes sua mãe era mais independente. Ela não aceitava as coisas (violência doméstica), tanto que ela separou do seu pai. E hoje ela mora com o seu padrasto, que é abusivo. Por que você acha que é assim?


Dediane – Eu não questiono mais essas questões com a minha mãe. O que eu acho é que meu padrasto não consegue mais abusar dela, eu acho que isso reverteu. Eu acho que minha mãe hoje criou uma dependência do meu padrasto, ambos são dependentes um do outro. Eu acho que eles não conseguem viver separados. E isso é amor. É uó, mas é isso. Acho que pode ser isso também que reflete na minha vida, de eu não querer amar ninguém. Hoje, minha mãe mora no Sertão, né, e no Sertão minha mãe tá rodeada de todos os familiares dela, ela se sente muito protegida lá. Então meu padrasto come o que ela der. Então eu acho que isso reverteu hoje. Eu não sei se hoje ainda têm esses abusos. Eu não sei porque eu não questiono, eu não pergunto mais. A minha tia diz que não há mais, mas eu não sei. Mas que rolou (antigamente), rolou.



Letícia – Os seus sentimentos ruins em relação a ele são por causa dos traumas que aconteceram e também por causa dessa atual realidade de violência que existe entre eles?


Dediane – Não, eu acho que primeiro foi o ciúme. Eu sempre tive antipatia a esse sujeito. Depois, minha mãe trabalhava e ele não. Minha mãe que sustentava eles e pra mim era um absurdo. Além de ela sustentar eu e meus irmãos mais novos, minha mãe ainda tinha que sustentar meu padrasto. É aquilo que eu falo: eu não tolero nenhum tipo de abuso, então eu sempre observei que meu padrasto abusava da minha mãe nessa perspectiva. Hoje meu padrasto não tá trabalhando, nunca trabalhou mesmo. Ele hoje conseguiu um BPC (Benefício de Prestação Continuada, no valor de um salário-mínimo, destinado a pessoas de qualquer idade que possuam alguma deficiência) por conta de um monte de problema de saúde que ele tem, e que também eu acredito que ele seja alcoólatra, mas que nunca também teve essa concepção de alcoolismo.


Minha mãe também nunca bebeu, e eu acho isso um absurdo, porque minha mãe tem um ímã pra homem que gosta de álcool. Ela diz que eu sou igual ao meu pai, porque eu só gosto de cachaça. Então eu acho que esses abusos foram muito nessa compreensão, porque, quando minha mãe se juntou com o meu padrasto, a gente já tava bem grande. Acho que ela passou um ano e meio solteira, aí depois ela encontrou meu padrasto e se apaixonou mesmo, né. E com essas relações de abuso, meu padrasto... Por exemplo, eu acho que, nesse período que ele se juntou com a minha mãe, ele deve ter trabalhado dois anos, (num total) de 17, 18 anos juntos. E sempre foi minha mãe que manteve a casa, e isso era um absurdo, porque na verdade tinham que trabalhar os dois, né. Então eu sempre achei que ele abusou da minha mãe porque ele ficava em casa. E eu acho que é isso também que me incomoda na presença masculina na minha casa, sem fazer nada, sentado no sofá, coçando o ovo. Isso me incomoda muito. Eu vou tratar isso em algum momento da minha vida com terapia, com alguma coisa, tentar entender também. A gente não entende tudo também, não.



Isabelle – O Felipe perguntou se tu não sente falta da tua mãe, e tu falou dela, da religião, da família. Tu não acha que talvez seja um preço alto demais que o ativismo cobra de ti, em abdicar dessas coisas?


Dediane – Eu me ofereci pra ser a trava-bomba do congresso nacional. Dar possibilidade pra que as outras pessoas possam viver suas sexualidades sem ser punidas, que as pessoas possam exercer suas identidades de gênero sem ser penalizadas é uma luta cotidiana. Quantas amigas minhas travestis, por exemplo, hoje vivem exclusivamente da prostituição em São Paulo, sendo exploradas sexualmente, foram traficadas pra outros países da Europa? Quantas amigas minhas morreram no decorrer dessa minha luta? Esse meu descontentamento, do meu cotidiano, da minha família, tudo isso refletiu muito nessa somatória das lutas.


Então eu não luto só pela luta das travestis e transexuais, eu luto por outro mundo possível, né, por outra possibilidade, outro mundo onde as desigualdades não sejam um demarcante direto do acesso à política pública. Dar possibilidade pra que outras pessoas LGBTs tenham acesso a educação de qualidade. Eu luto por uma luta que não é só minha, eu luto pra que meus sobrinhos, por exemplo, possam ter acesso ao ensino superior, para que a gente possa construir uma política de visibilidade, onde meus sobrinhos possam minimamente compreender que eles têm que estudar pra que eles possam acessar o ensino superior. Então a minha luta é pela possibilidade de outro mundo, e esse outro mundo não é pra mim, porque eu acho que não vou alcançar esse outro mundo. Esse mundo é pras gerações futuras, pra classe trabalhadora, é pra que a gente não silencie as violências, é pra que a gente denuncie.


Então eu acho que, se não tivesse essa luta, eu acho que eu nem estaria aqui conversando com vocês, porque, na verdade, a minha luta é o que vai me representar. Porque, na verdade, se eu não tivesse nos movimentos sociais, se eu não tivesse na resistência, eu não seria Dediane Souza, eu não sei o que seria. Então eu não me vejo fora da luta, eu não me vejo fora dos movimentos sociais, e é um preço que eu pago. Mas eu não sei se eu conseguiria estar em Santana do Acaraú, essa hora, três e quinze da tarde, sentada numa calçada vendo novela… Não, três e quinze tá tudo fechado porque é um calor do caralho. Dentro de casa assistindo novela e fazendo chapéu. Eu não sei se era essa a vida que eu queria porque, na verdade, eu já era descontente com essa vida, e aí eu tive essa opção. E que bom que eu tive essa possibilidade de ter uma opção. Quantas pessoas não tiveram a oportunidade de ter essa opção? E, de acordo com a minha escolha, eu fui descobrindo um conjunto de organizações, um milhão de possibilidades de uma vida alternativa. Quando eu chego no GRAB, Chico Pedrosa, que é presidente do GRAB, foi quem me disse: “Mulher, vai estudar”. E eu: “Aí, Chico, num sei…”. E foi então que eu fui estudar.


Meu processo de transição também foi aqui dentro do GRAB, quando os meninos se cotizaram, por exemplo, no meu aniversário de 23 anos pra eu poder colocar meu primeiro (par de) peito, porque isso pra mim foi um demarcante. Então, foram essas pessoas que entenderam a importância de como isso era simbólico e importante pra minha vida. Coisas, por exemplo, que eu não vou conseguir chegar lá pra minha irmã e contar pra ela e ela achar isso natural. Ela vai olhar pra mim com uma cara de estranhamento. Hoje não, hoje minha irmã tem uma referência sobre mim, mas quatro anos atrás tinha um estranhamento. Porque, na verdade, eu era como se fosse a viada desviada de casa. Então eu não sei se eu conseguiria fazer outra coisa da minha vida se não for o ativismo, se não for a luta. E, gente, quando eu digo “ativismo”, eu tô falando do ativismo diário mesmo. Eu não faço ativismo só dentro de uma organização institucional, eu faço ativismo todo dia, eu faço ativismo no meu prédio, por exemplo. Quando eu escuto qualquer burburinho, eu vou lá e voo no pescoço mesmo!


Então, né, no descontentamento das desigualdades, eu acabei, dentro desses espaços, me profissionalizando. Como eu me dediquei nesse período todo da minha vida a esses movimentos sociais, eu acabei me tornando uma gestora de políticas públicas. Então eu tenho também outra corresponsabilidade: de pensar algumas estratégias pra diminuir esse contexto de vulnerabilidade. Não é só ativismo, é o meu ativismo, o meu trabalho, a minha formação política, é tudo. Então não sei. “Dediane, hoje tu não vai poder fazer nada do que tu faz hoje”. O quê que eu vou fazer? Eu não sei o que eu vou fazer. Eu nunca me vi numa esquina (refere-se à prostituição). Não sei o que eu vou fazer, né.



Rodrigo – Como tu chegou a essa decisão de fazer Comunicação?


Dediane – Ó, quando terminei meu ensino médio, passei na primeira fase da Uece (Universidade Estadual do Ceará) pra Sociologia (referência ao curso de Ciências Sociais). Eu tinha 17 anos, eu não queria estudar nada, eu queria era viçar (expressão cearense que, neste contexto, significa algo como “só querer se divertir“). Conhecer o mundo. Então, eu passei pra Sociologia, eu sempre quis estudar Sociologia, eu queria estudar Ciências Sociais. E, quando eu passei pra Ciências Sociais, eu tava no IJC.


Eu me lembro como se fosse hoje: no dia da segunda fase, eu fui pra praia. Eu não queria estudar. Eu ainda não tinha descoberto minha sexualidade, eu vim fazer sexo quando eu tinha 16, 17 anos. Tive (sexo) em relações em que eu era explorada sexualmente achando que era amor. Tem um monte de questões aí colocadas.


Então, quando eu passei na Uece na primeira fase e não fui fazer a segunda, eu disse: “Não, eu não vou estudar agora, não. Se eu passei agora, eu passo em outro momento”. E fui pro mundo. E nesse mesmo período foi quando Chico olhou pra mim e teve uma oportunidade de emprego, de trabalho pra mim pra além do GRAB, outra experiência. E eu não pude assumir porque eu nem era estudante e nem tinha graduação. E foi quando eu disse: vou estudar qualquer coisa. Aí o Chico: “Mulher, por que tu não vai pra Comunicação?”. Chico é jornalista também. Aí eu disse: “Será, Chico? Queria fazer Ciências Sociais”. Aí o Chico: “Você que sabe, você vai ter que estudar um período pra você tentar Ciências Sociais”. Aí eu: “Sabe de uma coisa? Eu vou fazer vestibular em qualquer faculdade e vou estudar”.


Aí fui estudar Comunicação. No meio do curso, eu queria desistir: “Ai, que negócio mercadológico, que coisa difícil. Como é que eu, travesti negra, vou conseguir trabalhar nesse negócio elitizado que é a Comunicação, que é um papoco, é muito fechado, o que eu vou fazer?”. Aí eu pensei: eu preciso da Comunicação não é pra eu ser jornalista. Eu preciso da Comunicação pra pensar a Comunicação, ser crítica da Comunicação. E aí foi quando eu priorizei o processo mesmo de finalizar a graduação. E também teve o período que passei em São Paulo, um ano e meio. E o que me adoeceu muito foram as humilhações que a gente sofre por ser viado, preto, travesti e sem ter uma graduação e estar num cargo de chefia. Você sofre muito.



Luís – Como foi lá, em São Paulo, durante esse período que você viveu lá?


Dediane – Ai, é babado. São Paulo me deixa triste, é uma experiência que eu quero ignorar às vezes. Eu fui trabalhar em São Paulo por um convite. Eu era conselheira nacional de juventude pela ABGLT, pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Tinha ido pro Conselho Nacional de Juventude e Alessandro Melchior era o meu titular, eu era suplente de Alessandro Melchior no Conselho Nacional de Juventude e a gente organizava a comissão do Conselho, que era a comissão de monitoramento de programas e políticas públicas de juventude.


O conselho se reunia mensalmente e, como o Alessandro era da mesa diretora, eu acabei assumindo a titularidade. Então eu tive um encontro de almas com essa figura chamada Alessandro Melchior. E quando Haddad ganhou da gestão de prefeito em 2012 e assumiu em 2013, Alessandro foi convidado pelo Haddad pra trabalhar na coordenação LGBT lá em São Paulo, na Secretaria de Direitos Humanos (o cargo de Mechior era de coordenador de política LGBT da Secretaria). Quando o Alessandro foi pra lá, ele disse: “Dedi, tu já pensou em sair do Ceará?”. Aí eu digo: “Ai, não, Alessandro, não vem com essas histórias, não”. Aí passou, vai e vem, o Alessandro não era coordenador, ele era técnico de lá. Puff, Alessandro assume a coordenação.


Aí eu lembro, eu tava aqui no GRAB, isso foi março de 2014. Tava bem, tava coordenando os projetos aqui, no GRAB, fazendo outras coisas. Aí Alessandro me liga. Disse: “Dediane, tu lembra que eu te fiz um convite naquela época?”. Eu disse: “Lembro”. E ele: “E aí?”. Daí eu disse: “Deixa eu pensar”. Aí liguei no outro dia: “Já falei com o Chico, eu tô indo”. E ele: “Ótimo”. Pronto. Aí Alessandro some, entra num buraco e só volta a conversar comigo no final de maio. E eu tinha esquecido, né. Se alguém me convida pra ir pra um negócio e não fala mais nada, eu vou cuidar da vida. Quando é em maio, Alessandro diz: “Mulher, arruma tuas malas, que eu acabei de comprar tua passagem. Tu vem em 17 de maio”. E isso era 14 de maio, eu tinha três dias pra arrumar minhas coisas e ficar livre de tudo. Eu disse: “Não, Alessandro, eu não consigo fazer isso, não, eu tô trabalhando, eu não tenho mala, eu não organizei nada, eu não vou assim”. Alessandro disse: “Mulher, é uma oportunidade, vem, amanhã me manda teus documentos escaneados tudo que tua nomeação vai sair”. Aí eu: “Puta que pariu, o que eu vou fazer?”. Aí eu: “Chico, eu vou pra São Paulo mesmo”. E ele: “Mulher, tu não já tinha descartado essa possibilidade?”. “Pois é, tô indo”. Aí cheguei pra Alexandre e Roberto lá em Passaré e disse: “Pronto, perfeito, tô indo pra São Paulo”. “Louca… Acorda de manhã indo pro GRAB e volta dizendo que vai pra São Paulo”. Aí eu disse: “Pois é, vou- -me embora pra São Paulo”. Assim fiz, arrumei minha mala e fui-me embora pra São Paulo.


Cheguei no inverno de São Paulo, com uns vestidos coloridos, gente… Aí tinham umas amigas que eu já conhecia do movimento (social) de São Paulo. Imagina eu com um vestido longo todo colorido na chegada do inverno em São Paulo. Né, tipo assim, nada a ver lé-com-cré. Aí minha amiga: “Mulher, isso é um absurdo!”. Aí eu digo: “Que foi?”. “A senhora tá muito retirante…”. Aí eu digo: “Mas eu sou retirante!”. E ela: “Não, amiga, vem aqui”. Eu nem tinha contado pra ela que eu tinha ido. Alessandro tinha contado pra ela que eu tava indo e ela já tinha feito uma mala de roupa pra mim por causa da chegada do inverno. E quem vai pra São Paulo e mora no Ceará não tem roupa de frio. E eu cheguei no auge do inverno. E ela disse: “Não, mulher, pega esses vestidos e guarda tudinho. Toma essa mala”. E me deu uma mala de roupa. Foi uma experiência muito bacana do ponto de vista profissional. São Paulo tinha o maior orçamento da política pública da América Latina, né, tinha 4 milhões de reais pra construção da política pública LGBT. Tava no plano de governo do Haddad, no plano de metas, um conjunto de questões colocadas, inclusive o programa Transcidadania, não sei se vocês já ouviram falar (ainda em funcionamento, o projeto busca “fortalecer as atividades de colocação profissional, reintegração social e resgate da cidadania para a população LGBTT em situação de vulnerabilidade”).


Quando eu fui pra São Paulo, o programa Transcidadania tinha sido pensado e a gente que operacionou e redesenhou o programa Transcidadania, e eu tinha ido pra coordenar o centro de referência em São Paulo. Quando eu cheguei, não existia o Centro de Referência, então eu tinha que estruturar. Tu imagina eu estruturar o Centro de Referência da cidade de São Paulo sem conhecer a cidade… Eita, negócio babado. Então eu comecei, mergulhei no negócio com tudo. E aí, quando deu cinco meses, eu me frustrei porque eu não tinha entregado o serviço ainda, louca, né. Eu entrava na Secretaria (de Direitos Humanos) nove horas da manhã e meia-noite eu ainda tava dentro da Secretaria junto com Alessandro, construindo, fazendo licitação, fazendo coisas, e tinha dias que eu tava louca. Eu dizia: “Eu vou-me embora, eu vou-me embora, esse negócio não vai sair, eu vou-me embora, eu vou-me embora”. E Alessandro: “Tá é doida, mulher”.


Eu morava com Alessandro também, então as relações se desgastavam muito por isso, porque a gente morava juntos e trabalhava juntos, então a gente tava juntos 24 horas. Então eu comecei a trabalhar reestruturando serviço, a coisa toda, conhecendo a cidade também, porque eu precisava conhecer a cidade. Então eu comecei a ir pra periferia, sempre quis conhecer a periferia, andava de metrô, me perdia… Mas na experiência profissional foi muito bacana, porque eu fiquei lá um ano e meio, e foi o ano e meio em que a gente fez as maiores entregas de São Paulo na política pública LGBT. A gente entregou o Transcidadania, com 100 travestis e transexuais beneficiadas pelo programa. A gente estruturou o programa, abriu a pré-inscrição, fez as inscrições, a gente lançou o programa. Lançamos com 100 travestis recebendo uma bolsa de um salário-mínimo, voltando pra escola pactuada com o EJA (Educação Jovens e Adultos), estudando, fazendo curso de qualificação profissional, fazendo curso de cidadania, de direitos humanos no maior centro de cidadania LGBT da América Latina, 400 metros quadrados na (Praça da) República (no Centro de São Paulo), né, um andar todo mobiliado com equipamentos e equipe funcionando de nove da manhã a nove da noite, massa, e uma unidade móvel de cidadania LGBT rodando pela cidade. Isso pra mim era muito gratificante, mas eu não queria só isso, eu queria fazer outras coisas também em São Paulo. Mas eu não tinha essa possibilidade. Eu comecei a fazer Direito em São Paulo e comecei a me animar com o Direto, tarará, tarará… E aqui, a Comunicação trancada. Aí chegou um belo dia, tem até um vídeo meu nesse dia, foi no dia que eu pedi minha exoneração. Eu tava com um problema com dois estagiários que eu tinha que devolver pra Secretaria. E eu disse: “Não, eu tenho quatro estagiários que são meus”. Alessandro disse que eu não tinha nada. E eu digo: “Não, os estagiários trabalham comigo, tá aqui na minha grade”. E ele disse: “Não, você vai ter que devolver os estagiários”. E eu não queria demitir eles. Não queria demitir os estagiários. E aí nesse dia Alessandro me liga e diz: “Mulher, cadê os estagiários, já mandou embora?”. E eu disse: “Não vou mandar nenhum estagiário embora”. E ele: “Pois a gente conversa já, já”. Ele tava saindo da Secretaria e tava indo lá no Centro, porque eu tava lá no centro. No período que Alessandro sai da Secretaria e chega no Centro, eu peço minha exoneração. E aí, quando Alessandro chega, eu já tô pegando minha bolsa e saindo. Ele disse: “Vamo conversar”. E eu digo: “Não, olha teu email, eu tô indo pra casa”. Morando com Alessandro, meu chefe. E aí não conversei com Alessandro o final de semana todo e, quando chega no sábado, tava tendo a conferência nacional de mulheres, eu era delegada e tinha levado as trans também pra disputar lá a coisa toda, e aí eu recebo uma ligação de Chico, aqui no GRAB. “Dedi, eu tenho uma proposta pra te fazer”. Aí eu digo: “Chico, eu pedi a exoneração ontem, tô aceitando qualquer coisa”. Aí ele: “Mulher, arruma as coisas e venha simbora, a senhora vai coordenar o Centro de Formação Juvenil para o Turismo Patativa do Assaré”. Linda… “Alessandro, vamo aqui discutir minha transição”. Aí discuti bonitinho, ficaria até o dia 13 em São Paulo. Quando eu cheguei na semana seguinte pra trabalhar (na Secretaria, em São Paulo), já tinha alguém sentado na minha cadeira. Eu só virei a cara, joguei minha chave, arrumei minha mala e fui pro aeroporto. E aqui estou. Então a experiência foi muito bacana de conhecer uma cidade e trabalhar com uma política de direitos humanos, trabalhar com (Eduardo) Suplicy, que era secretário de Direitos Humanos, ter um chefe como o Haddad, sensibilizado, sensível às questões LGBT. Porque, na verdade, o Haddad é que encomendava a política pública, ele que ligava no nosso celular perguntando “cadê o Transcidadania?”. O programa era encomenda do Haddad. Porque a mãe do Haddad mora em Indianápolis (bairro nobre da zona sul de São Paulo), que é o lugar que todas as travestis trabalhavam. E aí, quando ele voltava (da casa da mãe), ele via todo o contexto de vulnerabilidade das travestis que estavam lá, elas estavam muito drogadas, dormindo na rua, a coisa toda, e ele disse: “Um dia eu vou ser prefeito e vou construir um programa pra travestis e transexuais”. E quando saí, Alessandro me liga: “Dedi, a gente vai ampliar o Transcidadania”. Tava com 200 travestis e transexuais (dados de 12 de julho de 2019, no site da Prefeitura de São Paulo, contabilizavam 179 beneficiários do programa, com auxílio mensal de R$ 1.047,90).


E, gente, não tem coisa mais gratificante que você ver a sua companheira que migrou do Ceará, do Pará, de Manaus, todas voltando à escola. Então é isso que me gratifica, entendeu? É isso que paga. Então eu acho que valeu a pena a experiência, meu currículo foi pra casa do caralho (no sentido de ter qualificado o currículo). Mas o ensino superior era muito cobrado de mim, “cadê a porcaria desse canudo?”. Eu disse: “Meu Deus do céu, Direito vai ser quatro anos e meio ainda”. E coçava a cabeça... E foi quando eu voltei de São Paulo que eu disse: “Eu vou estudar mesmo”. Sendo que, antes de ir pra São Paulo, eu fazia quatro disciplinas e todo semestre ficava uma reprovada, porque eu tava fazendo ativismo, eu tava viajando, batendo perna, fazendo minhas coisas. Então eu disse: “Eu vou terminar um dia”.


Quando eu volto de São Paulo, eu volto com oito disciplinas e com uma dívida imensa, né. As amigas se cotizaram mais uma vez e contribuíram aí pra eu voltar a estudar. Eram oito disciplinas, eu fazia disciplina de manhã e de noite. Chico disse: “Vá terminar esse negócio”. “Chico, posso fazer disciplina de manhã?”. “Pode”. Eu trabalhava aqui, no GRAB oito horas por dia, coordenava o Centro (Patativa do Assaré), fazia meus truques, voltava pra faculdade, voltava da faculdade e vinha pra cá. Daqui eu ia pra faculdade porque tinha aula às 9 horas, abria o GRAB porque tinha curso pros meninos, ia pra faculdade, voltava pra cá, de noite ia pra faculdade de novo e voltava pra casa.


E assim foi durante quase dois anos. Eu tava no quarto semestre, mas devia um monte de disciplina, né, que eu tinha perdido no meio do caminho. Todo semestre eu riscava minha grade. Primeiro faltavam 25 disciplinas, “vamo aqui matar essas” e riscava. “Luizete, falta só tantas”, Luizete é uma amiga que mora comigo. A Luizete: “E o TCC?”. “Eu vou fazer o TCC agora”. Defendi o TCC mais de um ano atrás, em junho de 2017, e só consegui me formar em 2018.1. Então tinha essa cobrança também pra ter um ensino superior. “Ah, Dediane, tu se intitula jornalista, mas tu não trabalha na área do Jornalismo”. Não, eu produzo conteúdo em todos os cantos onde eu estou trabalhando, eu tô sempre produzindo. Não vou pro mercado. Não me vejo numa redação, por exemplo. Eu acho que tenho muito mais pra contribuir em outras perspectivas. Claro, sobrevivência? Eu vou catar latinha pra sobreviver, tenho crise não.



Alice – Tu falou sobre o engrandecimento profissional durante sua experiência em São Paulo, mas primeiramente tu tinha falado que lá te adoeceu. Numa perspectiva pessoal, como foi esse adoecimento?


Dediane – Pronto, o adoecimento foi muito na perspectiva da solidão. Só conseguimos fazer tudo isso nesse período que eu tava em São Paulo junto com a galera toda lá por causa dessa identificação. A gente pegou essa coisa pra nós mesmos, entrava na secretaria nove da manhã e saía nove da noite. E à noite eu saía no meio da cidade e pegava o metrô pra vir pra casa. E várias vezes a gente fez isso mais Alessandro. E isso me adoeceu por conta dessas relações, das relações que eu fui construindo também nesse período.


Eu não tinha nenhuma referência de amizade, minha amizade era o Alessandro; a Janaína, que era uma amiga minha que fazia oposição à Prefeitura (à gestão de Haddad). Depois a Símia chegou em São Paulo. A Símia ia trabalhar comigo, mas ela também não queria discutir as questões do trabalho depois do trabalho, porque ela batia o pontinho dela e entrava oito horas da manhã, e cinco da tarde tava indo embora. E ela olhava pra mim e eu tava lá na Secretaria. Então o que me adoeceu foi esse processo de distanciamento das minhas relações. Em São Paulo, eu não tive tempo pra construir outras relações, a não ser as de trabalho.


Então chegou um momento em que eu tava totalmente endurecida. Esse foi o adoecimento, foi o endurecimento, foi não ter vivido a cidade, foi ter mergulhado no trabalho e ter um acúmulo de estresse e ir no meu limite por conta que tudo que eu fazia era o trabalho ou com as pessoas do trabalho. Então isso desgastou algumas relações.


Adélia – Tu trabalhou na Prefeitura (de São Paulo) e tu também trabalhou numa organização não governamental (no GRAB). Tu sabe dizer se existem contradições, diferenças entre esses dois momentos da tua vida, nesses dois lugares em que tu trabalhou?


Dediane – Não, porque, na verdade, mesmo na Prefeitura eu faço ativismo. Eu vou fazer ativismo onde eu estiver, gente. Não tem como eu não fazer ativismo. Eu acho que a gente é feito de contradições, e acho que a maior contradição é você estando na administração pública, na gestão, não conseguir estruturar uma política que você sonha, que você reivindica, que você bate e que você critica. Mas, quando você chega na administração, você vai perceber que tem uma relação de trabalho naquele espaço, que você vai ter um conjunto de questões que vão lhe limitar dentro do campo burocrático, dentro do campo administrativo, e que você também vai ter que fazer uma disputa de imaginário.


Convencer o gestor, a gestora, convencer as outras pessoas que estão naquela estrutura da importância desse trabalho. Da importância da estruturação da política, da importância do orçamento. Então você vai começar também a fazer ativismo dentro do campo institucional, dentro da própria administração pública. Hoje eu tô na prefeitura (Dediane é hoje chefe da Coordenadoria da Diversidade Sexual da Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza - SDHDS, na segunda gestão do prefeito Roberto Cláudio, do PDT). “Dediane, vocês têm alguma política estrutura da pra população LGBT?”.


A gente tem o Centro de Cidadania LGBT Janaína Dutra, a gente tem o conselho municipal de políticas LGBT, a gente tem a coordenadoria especial da diversidade sexual, a gente tem um orçamento pensado... Mas, quando a gente vai pro processo da execução, a gente não consegue ainda, por exemplo, construir essa maior rede que São Paulo construiu. “Ah, Dediane, mas por que vocês não constroem, não é prioridade no governo?”. O que a gente não tem dentro desse processo de concepção é, por exemplo… Vou tentar formular aqui pra não falar nenhuma loucura… A gente não tem o pensamento de priorização. Cada gestão vai priorizar algo. A gestão do Haddad de São Paulo priorizou a política de direitos humanos. O Roberto prioriza mobilidade. Então têm muitas diferenças. E aí, como é que eu vou construir ou vou fortalecer o que já existe de política pública, porque eu tô na administração, eu sou paga com o dinheiro de vocês.


Então o quê que eu vou fazer pra população LGBT? Eu vou minimamente fortalecer o que já existe nas políticas públicas. A gente tem um centro de referência hoje que funciona. Não tô dizendo que nunca funcionou, hoje funciona porque a gente tá produzindo conteúdo, a gente tá fazendo atendimento, a gente tá bombando na cidade, a gente tem um conselho municipal também bombando na cidade, a gente tem uma coordenadoria que tá fazendo o incidente dentro do campo institucional, discutindo diversidade sexual dentro dos CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), dentro do CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), dentro das escolas. A gente tá dentro das escolas discutindo. Embora a gente não tenha aprovado o plano municipal de aula de gênero e diversidade sexual nas escolas, de alguma forma a gente tá discutindo nas escolas. A gente montou um plano de estratégia. A gente tá em unidade básica de saúde dialogando, por exemplo, a respeito do nome social. Então a gente acaba fazendo esse ativismo, que eu faria aqui, no GRAB, através de algumas incidências. Eu tô fazendo junto com a nossa equipe lá na Coordenadoria, sabendo de todas as limitações orçamentárias, sabendo de todos os processos. Se eu tenho mão de obra, então a gente vai pro meio do mundo.



Adélia – Entre toda essa tua experiência no ativismo, tem alguma que tu considera que foi sua maior realização no âmbito do ativismo?


Dediane – Eu acho que ainda vou ter. Todas são importantes, mas eu acho que ainda vou ter essa experiência maravilhosa. Tô esperando o celular tocar, nunca toca.



Alice – Dediane, conversando com o Chico, ele contou uma história de quando você voltou pra Santana do Acaraú pra mudar o seu nome na sua identidade. Como foi isso, o que significou pra você?


Dediane – Eu, na verdade, sempre tive muito desejo de fazer essa retificação. Eu tinha um processo judicial datado de 2012, com um conjunto de documentos. Era um processo imenso e nunca tinha me dado uma sequência favorável à retificação do meu nome. Não era nem gênero, porque eu não queria mudar gênero nesse processo. Eu pedi só minha retificação de prenome porque o nome que minha mãe me registrou quando eu nasci é um nome que nunca foi meu, nunca me representou. Só pra vocês terem noção, desde criança eu tive apelido, eu era Dedé. E o nome com que minha mãe me registrou era José Batista de Sousa, era algo que eu carregava e que eu tinha muita raiva. Então, quando eu fui na minha cidade retificar o meu nome, eu ia com a minha mãe, eu ia pedir pra minha mãe fazer isso pra mim, mas eu tinha muito medo de ela ouvir errado e meu nome vir errado, ou da minha mãe não saber como era a coisa toda e ela ia dar um escândalo, minha mãe é babado.


Minha mãe não leva desaforo pra casa, não, ela faz escândalo mesmo. Ela vai na unidade básica de saúde e não tem remédio: “Mas por que não tem remédio?!”. Minha tia me liga e diz: “Mulher, tua mãe veio aqui ontem e deu um escândalo porque não tinha o remédio da pressão dela e eu dizia ‘Lindalva, mulher, tua pressão vai cair aqui e tu vai morrer, mulher, para de gritar aqui na frente do posto’; e ela ‘eu quero é meu remédio, tu tá combinada com esse médico!’”. É babado. E aí eu fui pra Sobral sozinha de manhãzinha. Foi depois da Parada (pela Diversidade Sexual de Fortaleza) a decisão. Tinham aprovado a resolução no STF (em 1º de março de 2018, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser possível a alteração de nome e gênero no registro civil mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo), mas não tinha regulamentado pela Corregedoria (Geral da União, CGU). E eu não tinha como ir porque eu tava no processo da Parada, e isso foi em março.


Demorou mais ou menos uns dois a três meses pra ter um provimento estadual. E, quando teve o provimento, eles mandaram cancelar todas as certidões que estavam sendo emitidas porque iam padronizar o sistema. Então eu não consegui e depois eu não consegui resolver por conta da Parada (LGBT). Quando foi 28 de junho, dia do orgulho LGBT, eu, linda, me acordei de manhã, juntei minha documentação, peguei um busão e fui pra Sobral. Deixei minhas coisas com uma amiga, peguei uma topique e desabei pra Santana do Acaraú. E eu tinha combinado de pegar minha mãe pra ir com a minha mãe pro cartório.


E eu disse: “Por que que eu vou levar a mãe pra isso? Se tiver babado, vai ser nós duas brigando”. Não, peguei minha mochilinha e fui perguntando: “Onde é o cartório fulano de tal?”. Descobri onde era o cartório. Quando eu cheguei lá, eu vi que uma menina superquerida que era a tabeliã de lá. Aí consegui fazer a retificação no mesmo dia. Fui-me embora com a certidão de nascimento, tudo. Eu já tinha ido uma vez anterior na minha mãe e tinha tido um estresse com a minha vó, porque eu tava mostrando muito colo e tatuagem, né, então minha vó me olhou assim, meio torta, e veio soltar uma dizendo que eu ia pagar. Que eu ia prestar conta com Deus. E eu digo: “Mulher, se fosse só eu… Nós tudinho vamo prestar conta”. Aí minha mãe viu que ia ter briga mesmo, porque, se minha vó viesse pra cima, eu ia voar no pescoço dela também. “Quem não vai prestar conta?”. Aí minha mãe viu que eu tava lá na cozinha, minha vó fazendo chapéu, minha mãe fazendo mingau pro meu vô, que tá doente, minha tia lá lavando as louça e eu fumando um cigarro e minha vó dizendo que eu ia prestar conta. A minha tia olhou logo assim pra mim e: “Eita, vai ter babado”. Aí eu disse: “Vó, vem cá, é só eu que vou prestar conta? A senhora não vai prestar conta, não, é?”. “Você acha o quê?”. Eu digo: “Duas coisas. Primeiro: se você não me aceita, fique caladinha, eu não venho aqui, não. A senhora não quer, eu não venho aqui. Mas não ache que eu vou mudar o meu comportamento porque você não aceita. Eu sou isso. E, se eu não fosse isso, era pior. E basta o mundo lá fora que já me espanca, que já me esculhamba, tudo isso”. Aí ela: “Mas você vai prestar conta!”. E eu disse: “Todo mundo vai prestar conta!”. Dei logo um grito lá. Aí minha mãe olhou e foi simbora. Minha vó viu que eu ia voar (reagir à agressão) mesmo, né, e eu vou pra cima, não tem isso, não. Minha vó foi lá pra sala e eu fiquei lá com a minha tia, que ficou virando os olhos, e minha mãe olhando calada. Aí depois eu fui lá quando fui embora porque ficou climão, né. Aí minha mãe: “Vamo simbora, minha filha”. Aí fui lá, dei um abraço na minha vó e disse: “Vó, nós, todo mundo, vamo pagar”. Aí minha tia disse: “Menina… Tua vó disse que nunca imaginou que ia ouvir aqueles gritos”. Eu digo: “Mulher, eu não vou tolerar ninguém, não. Se ela não quer que eu ande na casa dela, ela diga, que eu não ando!”. Aí minha mãe foi e soltou: “Não, a sua vó tem essas coisas, ela acha que só os filhos dos outros vão pagar, os dela não vão pagar, não”. Aí eu ignorei e vim mimbora, isso foi em março. Eu disse que só voltava ali pra mudar o nome. Aí dessa vez voltei. E, quando mudei tudo e cheguei lá por volta de 11h e cheguei na casa da minha mãe, já era 13h30, resolvido tudo. Aí eu digo: “Vó! Consegui mudar meu nome, agora eu sou Dediane Souza”. Aí ela: “Você sempre foi essa pessoa pra mim”. E eu pensei: “Que véia doida”. Só na minha cabeça, né. Mas eu acho que minha mãe fez a canção no ouvido, né. A minha mãe me abraçou e eu disse assim: “Até que enfim, né, mãe?”. E ela disse: “Ai, que felicidade… Minha moça”.


Porque minha mãe sempre me chamou de “minha moça”. Depois desse processo todo, ela sempre me apresenta como “minha moça” pra onde eu vou. A minha irmã é “minha menina” e eu sou “minha moça”. E, pra mim, foi muito feliz porque, na verdade, eu passei a responder por mim mesma. Antes eu não respondia por mim, respondia por algo que não era eu. Porque era muito constrangedor, eu sou Dediane e responder por outra pessoa. E pra mim a minha maior frustração seria eu terminar a minha graduação e não ter o meu diploma com o meu nome.


Então pra mim não valeria a pena essa luta toda, essa loucura toda. Então pra mim era muito simbólico isso, então eu precisava resolver isso. Eu tava juntando inclusive parecer psicológico pra botar no meu processo porque o Ministério Público tava pedindo no meu processo judicial, eu tava fazendo isso já. Eu já tinha ido lá no fórum, conversado com o serviço social, com ódio, mas eu tinha ido, porque eu precisava, então eu tava correndo pra resolver. E aí, quando foi a decisão do STF, minha filha, eu chorava, chorava, chorava… Então eu acho que isso é muito importante. E é importante também quando o serviço que a gente coordena na Prefeitura facilita a vida de outras travestis, porque na verdade esses procedimentos não são gratuitos, têm um custo. E quando a gente facilita a vida de uma transexual que sempre sofreu com essas questões dentro do processo de apresentar a ela quais são os caminhos pro processo de retificação…


Quando minha amiga Soraia, cabelereira, minha amiga há muito tempo, conseguiu mudar o nome que eu fui com ela e armei uma briga no cartório... Minha amiga Renata, que mudou o nome... Quando minha amiga Viviane, que trabalha comigo, mudou o nome... Gente, isso não tem preço! Isso é fruto do ativismo! Do meu ativismo, do ativismo de outros companheiros, o ativismo de Janaína Dutra. É isso que é gratificante. E isso não tem nada que pague. Eu sinto muita saudade dos meus irmãos, eu queria socializar mais com eles, queria bater os parabéns do meu sobrinho, mas eu preciso estar nessa luta.



Rodrigo – Tu falou que tu entrou no ativismo bem jovem. Eu queria saber quem foi que te apresentou à luta.


Dediane – Foi o Clédio! Na escola, eu tinha que fazer alguma coisa na escola, né, então eu entrei pro grêmio. Assistia aula quase nada, né. Ficava lá enfeitando a escola, batendo perna, fazendo a coisa toda. E eu já tinha essa coisa que tinha vindo comigo do sertãozão, eu já fazia teatro, já batia perna a torto e a direito, pegava meus chapeuzinhos e levava pra calçada da minha tia e ia assistir Maria do Bairro (telenovela mexicana exibida pela primeira vez no Brasil em 1997, pela emissora SBT).


Dava meus chapéus pra todo mundo, eu tinha que entregar minhas dez capas, eu podia fazer qualquer coisa depois disso. Eu tinha que ir pra escola, voltar da escola, meu papel era lavar a louça do almoço e dar conta das minhas dez capas de chapéu. Deixava minhas capas e ia pra rua. Ia pra rádio comunitária, que era na catedral, ia fazer o curso junto com os meninos de teatro, subia pros distritos pra fazer mugangagem e dizia que era teatro. Tem um grupo muito conhecido da minha cidade que chamava Boneco de Pano, que foi dos meninos que começaram a fazer teatro comigo, Patrícia, Luís... Eu fiquei muito feliz hoje, eu tava vendo umas coisas no YouTube e vi que tem uma TV na minha cidade, uma TV no YouTube. E eles fizeram um programa com o que tinha na internet, um programa sobre mim. E eu fiquei tão feliz, nem sabia que isso existia, eles pegaram as coisas todas e montaram um programinha, né. Eu sempre falo de onde eu venho, eu tenho que dizer de onde eu venho. E venho daqui, do GRAB, venho de Santana do Acaraú, onde minha mãe tá, meus parentes tão. Muitas vezes eu não quero expor, tipo assim: “Ai, Dediane, eu quero entrevistar tua mãe”. Eu não vou expor minha mãe. Sabe por quê? Porque depois eu vou sair de lá e ela vai ficar lá. E eu acho que ela não precisa justificar pra ninguém quem eu sou.


Então o ativismo é meu, das minhas lutas, e não o ativismo da minha mãe, nem o ativismo dos meus irmãos. Então sempre deixei isso muito claro pra eles também. Minha irmã diz: “Ai, você não me convida pro seu aniversário”. “Mulher, vamo fazer o aniversário aqui!”. Aí ela: “Vamo!”. A gente combinou de fazer uma festa agora lá (Santana do Acaraú), (para comemorar) os 55 anos da minha mãe, os 35 anos da minha irmã e minha formatura. Vão matar até um porcozão lá. Minha mãe tá dizendo que vai ser um festão. Mas eu nunca quis porque eu acho que é interferir no cotidiano deles, é mexer com a rotina deles e eu acho que eles não precisam justificar.


Por que que eu digo isso? A minha sobrinha, quando era menor... Eu tenho uma sobrinha com 16 anos. Quando ela era bem menor, ela me desenhou num trabalho da escola e ela começou a sofrer perseguição na escola. Eles diziam que eu não era menina, que eu era viado. Dizam: “Não, ela não é sua tia, é seu tio, ele é viado!”. Aí ela chegou pra mim e disse: “Tia, tu é viado?”. Aí eu disse: “Não, mulher, quem foi que disse essa besteira?”. E cruzo logo as pernas pra ela saber que vem história. Aí eu fui contar pra ela, né, e eu disse: “Mulher, é assim: têm umas pessoas que vão nascer no corpo errado, e eu nasci no corpo errado”. E ela: “Ah, tá”. E me chama de tia, as filhas dos meus irmãos tudinho me chamam de tia. Mas o meu cunhado, que é meu primo, é uma pessoa muito humana também e ele sempre soube também, eu acho, das minhas questões, da minha sexualidade.


Meu irmão mais novo, por exemplo, é uma das figuras mais lindas do mundo que vocês possam imaginar. Eu sempre tive esse distanciamento porque eu acho que eu não dou conta de estar no cotidiano deles, porque eu vou criar vínculo, vou querer morar lá perto, vou querer cuidar dos meus sobrinhos, vou querer fazer tudo isso e eu não posso. Eu já tenho o ativismo, tenho outra coisa pra vencer, eu tenho outra batalha. E eu também tenho que vencer individualmente, que é um dos maiores desafios, conciliar minha vida política, minha vida profissional com o meu ativismo.


***Ficha Técnica

Equipe de Produção: Adélia Farias e Alice Sousa | Entrevistadores: Adélia Farias, Alice Sousa, Carlos Vinícius, César Martín, Felipe Mendes, Isabelle Moura, Letícia do Vale, Luís Valente, Marcos Menezes, Marina Andrade e Rodrigo Salviano | Orientação: Robson Braga | Texto de abertura/Perfil: Adélia Farias | Fotografia: Thayná Facó


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