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Representatividade sáfica no cinema.

  • Foto do escritor: Liga Experimental
    Liga Experimental
  • há 4 dias
  • 5 min de leitura

Por Juan Freire e Kamilla Cardoso

Cena do filme Nunca Fui Santa (1999), sátira sobre “clínicas de conversão” que virou símbolo cult da cultura LGBTQIA+.
Cena do filme Nunca Fui Santa (1999), sátira sobre “clínicas de conversão” que virou símbolo cult da cultura LGBTQIA+.

Tornou-se comum popularizar as narrativas do desejo entre mulheres sob uma projeção paradigmática da sociedade industrial e da cultura de massas. A partir das últimas décadas do século XX, em meio aos desdobramentos das teorias queer e dos movimentos de visibilidade lésbica, o termo sáfico reaparece com força como uma categoria identitária e afetiva. A palavra remonta à poetisa grega Safo de Lesbos, que viveu entre os séculos VII e VI a.C. e ficou conhecida por seus poemas sobre o amor entre mulheres. No entanto, mais do que uma referência histórica ou literária, o sáfico passou a funcionar como termo inclusivo e flexível, abrangendo não apenas a cisgeneridade, mas também pessoas que encontram-se numa dissidência de gênero, mas que também experienciam a afetuosidade para com mulheres ou aquelas que encaixam-se dentro do espectro feminino.

Afresco representando Safo de Lebos, encontrado em Pompeia.
Afresco representando Safo de Lebos, encontrado em Pompeia.

Enquanto categorias como lésbica ou bissexual podem carregar limites normativos de identidade, o sáfico atua hoje como uma linguagem de pertencimento e de resistência, oferecendo espaço a quem não se encaixa em rótulos rígidos, mas compartilha de afetos em comum. Seu uso atual, especialmente em espaços on-line e culturais, revela uma tentativa de pluralizar as narrativas do desejo entre mulheres, acolhendo intersecções de gênero, raça, classe e experiência.


No campo do cinema, no entanto, a consolidação do olhar sáfico ainda é um processo em disputa. Durante grande parte do século XX, relações entre mulheres foram marcadas pelo apagamento sistemático, pela fetichização voltada ao olhar masculino da cisheteronormatividade ou por finais trágicos que reforçavam a ideia de que essas trocas afetuosas estavam fadadas a uma condenação indissociável. A representação sáfica nas telas surge, muitas vezes, sob camadas de codificação: com os olhares, entre os silêncios, e por meio de sutis simbolismos. Com o avanço das discussões sobre identidade de gênero e sexualidade, todavia, cresce também a presença de obras que se propõem a recontar essas histórias com mais profundidade, escapando do sensacionalismo e propondo novas formas de existir no cinema.


Não é de hoje que obras LGBTQIA+ são apresentadas nos cinemas, especialmente quando trata-se da retratação de casais sáficos, seja em filmes de terror, comédia ou em dramas. Mas, mesmo com o avanço da representatividade de mulheres sáficas, ainda existem lacunas e estereótipos que estão presentes em obras hollywoodianas.


Vamos começar com uma questão existente desde os anos 90: a ausência de casais sáficos fora do padrão para as telas de cinema. Afinal, é muito fácil achar um casal de duas mulheres brancas, cis e magras, mas quantos casais entre mulheres negras são representadas nos filmes? Entre mulheres transgêneros? Em narrativas sáficas, existe uma forte presença da hegemonia de corpos brancos e feminilizados, o padrão que a sociedade "aceita". Um dos muitos exemplos dessa padronização é Retrato de uma jovem em chamas (2019), que é um filme belíssimo, mas que infelizmente está dentro dessa questão social. Não é um hate ao filme - até porque considero o filme maravilhoso com uma história linda de amor - mas quis trazer como exemplo por causa da escolha do casting, que reforça esses padrões.


Adèle Haenel e Noémie Merlant em cena do filme Retrato de uma Jovem em Chamas (2019).
Adèle Haenel e Noémie Merlant em cena do filme Retrato de uma Jovem em Chamas (2019).

A repetição estética - corpos magros, brancos e cis feminilizados - é um próprio reflexo do que a indústria considera desejável, do que os olhares masculinos consideram adequados e bonitos. Quando o amor sáfico só ganha espaço dentro desses moldes, o que se diz para quem não se encaixa neles? Que seu amor não é digno de ser visto? Que sua história não é interessante? Esse é  um apagamento pouco discutido e feito de forma sutil, mas continua sendo cruel.


Mas podemos comemorar que isso está mudando aos poucos. Simplesmente um marco que mudou a indústria do cinema queer: The Watermelon Woman (1996). Vocês sabiam que esse filme, protagonizado por Cheryl Dunye, foi o primeiro a retratar uma mulher negra e lésbica? A personagem não é sexualizada nem coadjuvante, ela tem sua própria narrativa, cheia de memória e resgate cultural.

Cena do filme The Watermelon Woman (1996), onde Diana e Cheryl aparecem com taças de vinho.
Cena do filme The Watermelon Woman (1996), onde Diana e Cheryl aparecem com taças de vinho.

Outro fator que a indústria cinematográfica coloca em narrativas sáficas são finais trágicos. Ora, é como se o amor entre mulheres só pudesse existir nas sombras da solidão, culpa ou separação. As amantes se amam de forma intensa e no final seguem caminhos opostos. É como se o roteiro fosse reforçar a ideia do “impossível” ou “proibido” do romance sáfico, o que gera impacto em quem consome esse conteúdo.


E com essa pauta, não posso deixar de citar Azul é a cor mais quente (2013), o famoso filme de origem francesa que divide opiniões. Além das polêmicas envolvendo os bastidores, a narrativa do filme constrói a relação das protagonistas - Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos - com um amor intenso, mas que também beira a toxicidade. Já foi registrado em entrevistas o quanto elas se sentiram assediadas e abusadas no set de filmagens. Sem contar com a cena de sexo entre as atrizes, que foi bastante desconfortável e hipersexualizada, produzida sob o olhar do diretor Abdellatif Kechiche.


“A maneira como filmados este filme foi simplesmente insana. O cara (Abdellatif) é simplesmente maluco” - afirmou a atriz Léa em uma coletiva com Tua Hollywood Reporter.

Cena do filme Azul é a Cor Mais Quente (2013), onde Emma e Adèle se olham.
Cena do filme Azul é a Cor Mais Quente (2013), onde Emma e Adèle se olham.

Com todo esse enredo centralizado na dor e no desconforto, chegamos nos créditos finais onde as inseguranças findam-se de forma irresoluta e com a solidão assolando as personagens. Claro que casais sáficos podem terminar sem uma reconciliação na vida real. Mas a questão é: precisa mesmo tantos filmes abordarem finais trágicos para amantes lésbicas e/ou bissexuais? Esse tipo de filme passa a seguinte mensagem: o amor intenso entre duas mulheres está fora do alcance da felicidade.


Megan e pacientes da "reabilitação" em cena do filme Nunca Fui Santa (1999).
Megan e pacientes da "reabilitação" em cena do filme Nunca Fui Santa (1999).

Nunca fui santa (1999), por exemplo, é um filme que combate a tradição de finais tristes. No roteiro, pessoas LGBTQIA+ são levadas para um centro de “cura gay” e ensinadas a seguirem o padrão de “mulher” e “homem” na sociedade, com um roteiro leve e dramático, sendo uma obra aclamada pelo público jovem. Além do romance ser bem construído, a obra é um grito de resistência para os conservadores que insistem em reprimir pessoas diferentes. Ah, e ele faz isso com um belo humor. Afinal, rir também é um ato político!



Saindo um pouco das belas representatividades ocidentais, temos como representação sul-coreana A criada (2016). Nem preciso falar, né? O queridinho das sáficas, é um romance cheio de plot twist que começa com manipulação e golpe, mas logo se transforma em um enredo de fuga para a liberdade. 

Pôster do filme A Criada (2016), em que Sook-Hee massageia os pés de Hideko, sua senhora.
Pôster do filme A Criada (2016), em que Sook-Hee massageia os pés de Hideko, sua senhora.

O filme tem cenas de erotismo, mas não são feitas para o prazer do espectador ou para o público masculino, são feitas para afirmar a própria autonomia das protagonistas. E bem, o final das duas escapando juntas felizes e cheias de amor, deixa um calorzinho no coração.


O olhar sáfico nas telas não se limita a representar histórias, mas a reencantar os modos de ver e sentir. Ele quebra com o roteiro hegemônico da cisheteronormatividade e propõe outra coisa: corpos diversos como protagonistas de suas próprias narrativas, finais felizes, sem o trágico programado ou erotismo que não servem de fetiche, mas ao desejo legítimo de ser, de tocar, de amar.


Nesse sentido, se o cinema é um espelho do mundo, que ele reflita, então, os brilhos múltiplos da existência sáfica, não como exceção, não como algo raro, mas como parte da vida real, comum e possível entre mulheres.

Imagem que traz uma fita de filme estilizada com as cores do arco-íris — um símbolo sutil e bonito da intersecção entre cinema e diversidade LGBTQIA+.
Imagem que traz uma fita de filme estilizada com as cores do arco-íris — um símbolo sutil e bonito da intersecção entre cinema e diversidade LGBTQIA+.



 
 
 

1 comentário


eduardaabreu760
há 3 dias

simplesmente incrível

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