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  • Karyne Lane

18 de maio e o movimento por uma sociedade sem manicômios


O Movimento da Luta Antimanicomial surgiu da necessidade de proteger as pessoas consideradas "loucas" pela sociedade (Foto: Reprodução/Central Única dos Trabalhadores)

Desde a Antiguidade a loucura é atribuída a eventos sobrenaturais como possessões demoníacas, fúria dos deuses e bruxarias. Existem registros de 5 mil a.C. que mencionam um tratamento truculento para doentes mentais chamado trepanação: com uma lâmina cilíndrica era feito um furo na cabeça dessas pessoas, cuja finalidade era permitir que ‘os maus espíritos escapassem’ — procedimento que persistiu na Europa até o século XV. Nos séculos posteriores, dado que não havia um controle institucionalizado de saúde mental pelo mundo, a “loucura” passou a ser tratada como um assunto privado. As famílias eram as responsáveis por seus membros com transtorno mental, que, por sua vez, eram alvo de zombarias e chacotas.

No Brasil, o histórico no trato de doenças mentais se apresenta de maneira frágil. O primeiro hospício surgiu como um abrigo provisório no Rio de Janeiro em 1841, tendo como parâmetros os ideais separatistas do psiquiatra francês Jean-Étienne Esquirol: a pessoa internada precisava, necessariamente, ser separada do convívio em sociedade. No início do século XX ainda não havia perspectiva de políticas públicas voltadas para tratamentos desse cunho e somente no ano de 1941 foi criado o órgão administrativo Serviço Nacional de Doentes Mentais, responsável por fiscalizar serviços existentes e articular novos. No entanto, a medida não promoveu mudanças significativas no período. Até a década de 1950 o tratamento reservado às pessoas com transtorno mental se concentrava em banhos quentes e frios e na utilização de cadeiras giratórias, eletrochoque e medicação, sendo essa última utilizada em larga escala até hoje.

Fruto de mais de quatro séculos em que pessoas são taxadas pelo estigma da loucura por meio da internação compulsória e em que sujeitos(as) com transtornos mentais são marginalizados(as), surge em 1987, no Brasil, o Movimento de Luta Antimanicomial. Com o lema “por uma sociedade sem manicômios”, diferentes categorias profissionais, associações de pacientes e familiares, instituições acadêmicas, representações políticas e outros segmentos da sociedade questionam o modelo clássico de assistência centrado em internações em hospitais psiquiátricos, denunciam as graves violações aos direitos das pessoas com transtornos mentais e propõem a reorganização do modelo de atenção à saúde mental no país a partir de serviços abertos, comunitários e territorializados, buscando a garantia da cidadania de usuários(as) e familiares historicamente discriminados(as) e excluídos(as) da sociedade.

História da Luta Antimanicomial no Brasil

O Movimento de Luta Antimanicomial no Brasil surge a partir da necessidade de um espaço de diálogo de conscientização entre instituições e cidadãos(ãs) para combater e desconstruir o discurso de que pessoas com transtornos mentais representam ameaça ou risco à sociedade. Esse movimento caminha junto da Reforma Sanitária que ocorreu no fim da década de 70 e da qual resultou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e às experiências de desinstitucionalização da psiquiatria desenvolvidas nos anos 60 em Gorizia e Trieste, na Itália, pelo médico e psiquiatra Franco Basaglia. Uma série de eventos políticos nacionais e internacionais organizados a partir da necessidade de transformação dos serviços psiquiátricos deram origem ao que hoje se chama luta antimanicomial.

Com o objetivo de acabar com os manicômios e substituir, aos poucos, o tratamento dado até então por serviços comunitários, entra em cena o projeto de reforma psiquiátrica no Brasil: a partir dele, o(a) paciente deveria ser encorajado(a) para um exercício maior de cidadania, fortalecendo seus vínculos familiares e sociais. Com base na reforma, o Estado não poderia construir nem contratar serviços de hospitais psiquiátricos e, em substituição às internações, pacientes deveriam ter acesso a atendimentos psicológicos, atividades alternativas de lazer e tratamentos menos invasivos.

Encontro de Bauru

Capa do Manifesto de Bauru (Foto: Reprodução/LAPS - Memória da Reforma Psiquiátrica no Brasil)

Em dezembro de 1987, tomava corpo o II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, na cidade de Bauru, interior de São Paulo: organizado por cerca de 350 trabalhadores(as) de saúde mental que eram contra as políticas públicas em vigor na época, o chamado Encontro de Bauru é considerado a primeira manifestação pública pela extinção dos manicômios no Brasil e pela reestruturação da atenção em saúde mental, representando um importante passo para a luta antimanicomial. O evento de 1987 decidiu que o dia 18 de maio se tornaria o Dia Nacional da Luta Antimanicomial e uma nova política de saúde mental começaria a ser desenhada: um manifesto para pressionar o Estado foi assinado por 350 profissionais da área de saúde (a chamada Carta de Bauru), cujas principais reivindicações eram mudar a política manicomial e garantir direitos básicos aos(às) pacientes.

 

“Nossa atitude marca uma ruptura. [...] O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida” — Trecho da Carta de Bauru (1987)

 

Lei Paulo Delgado e a regulação da saúde mental no Brasil

Assim como o movimento da Reforma Sanitária culminou com a garantia constitucional da saúde como dever do Estado e direito de todos(as) através da criação do SUS, o Movimento da Reforma Psiquiátrica resultou na aprovação da Lei 10.216/2001, uma diretriz de reformulação do modelo de Atenção à Saúde Mental, transferindo o foco do tratamento (que até então se concentrava na instituição hospitalar) para uma Rede de Atenção Psicossocial estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos. Conhecida como “Lei Paulo Delgado” (nome do deputado que a apresentou ainda como projeto de lei na Câmara, em 1989), esse marco legal suscitou movimentos contrários e a favor da sua aprovação e provocou um amplo debate tanto no interior do parlamento quanto na sociedade sobre as políticas de saúde mental no Brasil. A lei estabeleceu a responsabilidade do Estado no desenvolvimento dessas políticas através do fechamento de hospitais psiquiátricos, da abertura de novos serviços comunitários e da participação social no acompanhamento de sua implementação.

As leis federais garantiram a promoção de um tratamento em comunidade, possibilitando a livre circulação dos(as) pacientes e não mais a internação e o isolamento, contando com os serviços de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento (UAs) e os leitos de atenção integral.

Desde então, as condições da saúde mental que tiveram início com a reforma psiquiátrica dos anos 80 evoluíram, mas a Luta Antimanicomial no Brasil ainda está longe de ser completada. O esforço pela reforma e a garantia de que a legislação seja aplicada ainda é uma questão a ser discutida e constantemente relembrada, uma vez que ainda existem muitos hospitais psiquiátricos no Brasil e estes acumulam relatos de abuso e casos de morte por negligência.

O lugar da loucura no Ceará e os 20 anos do caso Damião Ximenes

Desde o Brasil Império, o atendimento a pessoas com transtornos mentais era responsabilidade da Santa Casa de Misericórdia, e assim permaneceu até a Proclamação da República, em 1889. A vinculação entre instituições médicas e religiosas era uma prática comum no País, considerando o poder soberano que a Igreja Católica desempenhava na época. No período que se seguiu após a maior seca do século XVIII, a população que vinha dos interiores buscava abrigo em Fortaleza, na então Província do Ceará. Essas pessoas, consideradas uma escória social para a elite fortalezense, passaram a se aglomerar pela cidade sem condições de sobrevivência e, flageladas da seca, se tornaram as primeiras usuárias do Asilo de Alienado São Vicente de Paula. Construído em 1886, quando não havia nenhuma iniciativa de assistência e os lugares dos(as) “loucos(as)” eram a rua, a cadeia e os movimentos messiânicos, o Asilo foi inaugurado na chamada “Estrada Empedrada de Arroches”, a atual Avenida João Pessoa, no bairro da Parangaba. No fim do século XIX, o perfil das pessoas que iam para o Vicente de Paula era considerado indigente e criminoso.

A partir da urbanização e do crescimento das cidades, uma linha do tempo pode ser traçada sobre a construção de hospitais psiquiátricos no Ceará: em 1936, ocorreu a criação do hospital particular Casa de Saúde São Gerardo; em 1962, o primeiro hospital psiquiátrico público do estado foi inaugurado na Messejana; de 1962 a 1991, o Ceará acompanhou o processo de criação de hospitais privados desenvolvido pela Ditadura Militar, tendo inaugurado o Manicômio Judiciário e seis hospitais privados, conveniados com a Previdência Pública; no ano de 1982, foi realizada a criação do primeiro CAPS da cidade de Iguatu, com o início da tramitação da Lei Estadual de Reforma Psiquiátrica; 4 anos depois começou a implantação do SUS, com pioneirismo cearense; em 1999, com a morte de um homem na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral, acelerou-se a implementação dos CAPS no estado; no ano de 2001, entrou em vigor a Lei da Reforma Psiquiátrica no Brasil; a partir de 2005, a Rede de Assistência à Saúde Mental começou a ser estruturada.

(Foto: Reprodução/G1 Ceará)

A morte de Damião Ximenes Lopes representa um caso emblemático que resultou na primeira condenação do Brasil por violação de direitos humanos pela Organização dos Estados Americanos (OEA), há quase 20 anos. Damião morreu no dia 4 de outubro de 1999, na Casa de Repouso Guararapes, na cidade de Sobral, três dias após ser internado com um quadro de depressão grave. Em visita pouco antes da morte, sua mãe chegou a vê-lo amarrado, com as roupas rasgadas e lesões pelo corpo. Damião tinha 30 anos e sua morte foi notificada à família por “causa indeterminada”, o que levou a um pedido de realização de necropsia cujo relatório identificou sinais e marcas no corpo que sinalizavam a prática de tortura.

A família de Damião ajuizou ação criminal e ação civil indenizatória contra o proprietário da clínica psiquiátrica, bem como peticionou contra o Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela violação de quatro artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o País é signatário: os direitos à vida, à integridade física, às garantias judiciais e à proteção judicial.

Na época, a Subsecretaria de Direitos Humanos da Presidência da República informou que o Estado brasileiro reconheceu que a violação dos direitos “foi consequência da insuficiência de resultados positivos na implementação das políticas públicas de reforma da saúde mental que possibilitassem procedimentos de credenciamento e fiscalização mais eficazes de instituições privadas de saúde”.

Família de Damião Ximenes fundou um instituto que levou o nome da vítima (Foto: Acervo Rita Monteiro)

A repercussão do caso resultou no descredenciamento da Casa Guararapes do SUS, no fechamento do manicômio e na implementação de uma nova rede de atendimento na cidade, que passou a contar com três unidades do CAPS, uma residência terapêutica e leitos de internação em um hospital geral. Além disso, no ano de 2006 a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Governo brasileiro a pagar uma indenização de 278 mil reais aos(às) familiares de Damião por danos morais e materiais. Em ação cível, a justiça cearense condenou ainda a Casa de Repouso Guararapes, o médico Francisco Ivo de Vasconcelos (responsável pelo tratamento do paciente) e o diretor clínico, Sérgio Antunes Ferreira Gomes, a indenizarem a família de Damião em 150 mil reais. Em respeito à memória de Damião, um CAPS da cidade recebeu o seu nome e a família fundou um instituto em Sobral.

A saúde mental de Bolsonaro

A situação da luta antimanicomial no Brasil, frente às atuais configurações políticas que apontam para um profundo retrocesso, representam que esse 18 de maio carrega ainda mais significado. Em 6 de fevereiro de 2019, uma nota técnica divulgada pelo Ministério da Saúde do Governo Bolsonaro reorienta as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental e apresenta alterações que constam, dentre outras mudanças, sobre a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia (eletrochoques) para o Sistema Único de Saúde (SUS), internação de crianças em hospitais psiquiátricos e abstinência para o tratamento de pessoas dependentes de álcool e outras drogas.

O texto de 32 páginas, que saiu do ar dois dias após a publicação, retira o protagonismo da política de redução de danos e as demandas adotadas há 30 anos no Brasil através da luta antimanicomial e do movimento sanitarista. Além disso, o documento adota um discurso que reforça a guerra às drogas e, por consequência, a criminalização de usuários e usuárias. Em linhas gerais, a nota abre precedentes que vão contra tudo o que foi acumulado desde a década de 70 em pesquisas, debates, leis e ações na área.

O Dia Nacional da Luta Antimanicomial em 2019 permite rememorar que a Reforma Psiquiátrica no Brasil foi responsável pelas centenas de pacientes que puderam retornar às suas casas e ao convívio social, pela substituição da lógica de reclusão por uma lógica de inclusão, pela garantia de um viés humanizado que não demonizasse transtornos mentais para garantir o direito à cidadania e, coletivamente, por construir uma sociedade sem manicômios. Para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça, o caminho é fortalecer a luta antimanicomial.

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