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  • Levi Aguiar

Brasil na contramão: entenda a privatização do serviço de saneamento

Votação do Senado busca autorizar maiores concessões às empresas privadas que prestem serviços de saneamento básico

Em entrevista ao Portal da Liga, o professor Michael Viana, pesquisador da área de Saneamento Básico, questiona o estímulo à iniciativa privada previsto pelo novo marco legal do saneamento básico, aprovado pelo Congresso Nacional em 24 de junho. Brasil segue a tendência oposta à maioria dos países, que tem remunicipalizado o serviço.

O Brasil se tornou um epicentro de atuação do novo coronavírus. Uma das medidas de prevenção em relação à transmissão do vírus consiste em lavar as mãos com água e sabão. No entanto, como afirma o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Michael Viana, doutor em Saneamento Ambiental, cerca de 20% da população da capital cearense (aproximadamente 529 mil habitantes) não possuem acesso à água encanada. Essa realidade impossibilita essa parte da população de fazer a higienização correta do corpo para eliminar o vírus.

Outro dado preocupante é referente ao levantamento feito pela Instituição Melhor Escola, com base nos dados do Censo Escolar 2019. A pesquisa mostra que 65,56% das escolas públicas estaduais e municipais do Ceará não possuem todos os itens de saneamento básico (oferta de água potável, coleta e tratamento de esgoto ou drenagem urbana), outro agravante para a prevenção de infecção dos estudantes no retorno às aulas.

Privatizar o tratamento de água

Questões como essas ressurgem depois de o Senado Federal aprovar, no dia 24 de junho, o novo marco legal do saneamento básico no Brasil. A nova Lei determina que as empresas privadas e públicas de saneamento poderão concorrer para prestar seus serviços, mas a lei dá margem para que as empresas privadas assumam mais fortemente esse papel, para atrair investimentos no setor.

O Projeto de Lei (PL) 4.162/2019 foi aprovado pelos senadores com 65 votos a favor e 13 contrários. Em tese, o projeto propõe concessões para as empresas privadas. Essas empresas deverão atuar na universalização do saneamento básico, estabelecendo metas para a prestação do serviço e a previsão de investimento é de até R$ 700 bilhões.

Sobre a privatização, o professor Michael Viana comenta que existe um grande risco em se entregar um serviço tão essencial para a iniciativa privada. “Veja que o direito à água potável é um direito humano; e uma empresa privada, que visa ao lucro, pode concentrar sua prestação de serviço em áreas que dão maiores lucros a ela, como as capitais e outras grandes cidades, deixando de lado aquelas regiões de menor densidade populacional, podendo ferir o direito humano à água para estas comunidades”, argumenta.

O atual Plano Nacional de Saneamento Básico, regido pela lei n° 11.445, de 2007, prevê que o governo municipal é o responsável pela gestão do saneamento básico, mais especificamente do tratamento e abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, coleta e disposição de resíduos sólidos e drenagem urbana. Em Fortaleza, esses serviços são geridos pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), empresa vinculada ao Governo do Estado.

“Remunicipalização”

O Brasil está caminhando no sentido inverso do que tem acontecido em muitas partes do mundo. Pesquisadores de políticas públicas alternativas no Instituto Transnacional (TNI) fizeram um mapeamento de 11 organizações, majoritariamente europeias, e constataram que do início dos anos 2000 até o ano de 2017 foram registrados 267 casos de "remunicipalização" de sistemas de água e esgoto (quando o município volta a prestar o serviço).

Segundo o professor Viana, muitas outras cidades do mundo estão querendo reestatizar esse serviço, mas não conseguem, porque essa quebra de contrato é inviável em termos econômicos para o município. “É praticamente uma ida sem volta e podemos pagar um preço muito caro com essa medida”, comenta.

Quais medidas dariam melhores resultados?

  • Elaboração das tarifas

Segundo o professor Michael Viana, a elaboração das tarifas teria o sentido de ampliar a faixa de valores da tarifa de água e esgoto, de modo a arrecadar mais dos grandes consumidores. As grandes indústrias têm maior capacidade de contribuir financeiramente para a sustentabilidade do serviço.

  • Ampliação da água tratada às comunidades isoladas

Segundo a organização Trata Brasil, 53% dos brasileiros têm acesso à coleta de esgoto e quase 100 milhões de brasileiros não têm acesso a esse serviço. No Nordeste, 36,24% da população têm tratamento de esgotos.

Apesar da falta de cobertura de água tratada no território brasileiro, o Ceará conta com o Sistema Integrado de Saneamento Rural (Sisar). O Sisar é um instituto parceiro da Cagece, responsável por levar água potável a muitas comunidades isoladas que não são beneficiadas com rede de abastecimento de água da Cagece. É um modelo de gestão que atua há mais de 20 anos no Ceará.

  • Prioridades

Em 2010, a Organizações das Nações Unidas (ONU) reconheceu o direito à água limpa e segura como um direito humano essencial. A prioridade ao abastecimento de água deve ser dada aos mais vulneráveis socialmente.

Em geral, essas pessoas são as que mais sofrem com falta de água ou abastecimento descontínuo. A falta desses serviços aumenta as chances de doenças de veiculação hídrica (causadas por micro-organismos em água não tratada ou contaminada) e proliferação de vetores biológicos de doenças (a exemplo de ratos e baratas).

Argumentos no Senado

Água de esgoto acumulada a céu aberto - Fonte: shutterstock

Michael Viana analisou e rebateu alguns dos argumentos utilizados para defender o projeto aprovado pelo Senado Federal. Entenda alguns deles.

  • “O setor público é incapaz de ampliar a cobertura do seu acesso por falta de dinheiro”.

O professor sugere a elaboração de tarifas para a arrecadação dos grandes consumidores com maior capacidade de contribuir financeiramente para a sustentabilidade do serviço. Ele relata que, embora a lei estabeleça metas para cobertura de água e esgoto, não é garantido que essas metas sejam atingidas efetivamente. Além disso, nos casos em que as prestadoras privadas de serviços de saneamento não atendam ao que foi previsto na concessão ou no contrato, podem ocorrer duas situações:

1. Ao perceber que não tem viabilidade econômica ou que sofreu com alguma consequência econômica do mercado, a empresa pode acabar solicitando ao município que volte a ser o gestor desse serviço. Como na Argentina, a empresa não conseguiu se sustentar diante da recessão econômica do início dos anos 2000.

2. A tarifa sobe, a população começa a pagar por um serviço mais caro e a qualidade não melhora. Nesse caso, o estado ou o município passa a intervir junto às agências de controle. O problema é que esse trâmite pode se prolongar durante muito tempo e o processo acaba sendo inviável.

Falhas da administração público

Uma pesquisa do Instituto Trata Brasil e da GO Associados mostrou que o desperdício em 2018 chegou a mais de um terço da água tratada, em média. Essa pode ser apontada como uma das falhas da administração atual da água. No entanto, como afirma Michael Viana, para que haja uma redução desse percentual, seria necessário um grande investimento em trocas de peças e reparos em instalações da rede de abastecimento. E o retorno desse investimento só seria compensado ao longo do tempo.

Embora o novo marco legal do saneamento estabeleça metas quantitativas de redução de perdas nos contratos com as empresas, ele não deixa claro quais são esses valores, ou seja, não há nada que assegure uma redução de perdas substanciais a longo prazo.

Os riscos de uma privatização de serviços essenciais como esses podem ser grandes e tudo depende das condições em que as concessões vão ocorrer. As agências têm um papel fundamental para que isso não aconteça. No caso do Ceará, é a Agência Reguladora do Estado do Ceará (Arce).

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