top of page
  • Carlos Donisete

Não trago o teu amor de volta

Em crônica do sociólogo e escritor Carlos Donisete, o quadrilátero mais famoso e povoado de Fortaleza ganha voz e relata um pouco de sua história, dividida em três atos


Foto: Mapa Cultural do Ceará/Secretaria de Cultura

A terra

Tenho bem mais de 60 anos de idade. Sempre fico por aqui, do mesmo jeito… Uma sobrevivente! Vou me controlar para não passar a imagem de uma velha amargurada, saudosista, mal comida. Sabe, até onde a tua vista alcança, tudo me pertence. Só estou esperando o resultado do processo que corre em segredo de justiça.


Herdei o sobrenome, o relógio e as propriedades do meu primeiro marido, o boticário Ferreira. A gente tinha muita criação, mas só sobrou um bode empalhado num canto acolá para contar a estória.


Minha pele escura entrega a mistura de raças. E minha família toda é assim: minha irmã por parte de pai é da cor de jambo. Mora aqui do lado, onde tem a estátua da Rachel e de alguns felinos. Já meu irmão é ruivo, mas agora tá careca, de rabo de cavalo e metido a adolescente, com pista de skate e quadra esportiva no Benfica. A mais velha é a Louca das Plantas, até baobá tem! Ela tem a pele clara, mas não é europeia e muito menos francesa; logo, aquele sotaque é cena. Já a outra irmã, que vive na praia, é tupi total… Linda. Linda não, bonita. Mas não se preocupe, que a revitalização vai dar um jeito nela.


Tenho formação católica, mas não praticante. Sou uma cristã bem fuleragem. Gosto da casa cheia. A porta da rua sempre está aberta; e a mesa, posta. Sempre cabe mais um, igual coração de mãe. Aliás, aqui sempre acontece alguma coisa: rodas de conversas, festas populares, ações de cidadania, reportagens, shows, vale-night, pouso dos solitários, festival de cinema, pecados, contravenções e covardia.


O homem

Preciso aproveitar para falar que sou contra a exploração do trabalho infantil, o aborto (apesar de ter feito dois) e o tráfico de crianças. Filhos mesmo, são três. Os demais são netos e bisnetos de coração, e todos são conhecidos como antissocial, baldo, beligerante, camumbembe, colorido, come-lixo, criminoso, delinquente, desempregado, desvalido, doente, favelado, fracassado, homeless, indigente, invisível, lombrado, mendigo, miserável, morador de rua, pecador, pedinte, renegado, retirante, suspeito, trecheiro, underdog, vadio, vida loka, vulnerável, zé droguinha.


Mas também tem uns artistas, e em dezembro chegam uns sobrinhos, da parte rica da família, para cantar músicas natalinas. Tenho muita ajuda para dar de comer, roupa, educação. Minhas crianças fazem o corre durante o dia, e só durmo depois que todo mundo chega. Herdarão minha mania de construir a vida no precário, minha capacidade de recomeçar e minha fome.


A pandemia (“fique em casa, lave as mãos, use álcool em gel, use máscara, mantenha distanciamento social”) só veio colocar uma lente de aumento no sofrimento e lembrar que somos gente igual a todo mundo. E vocês se lembram disso?


A luta

Meus relacionamentos amorosos oficiais duram quatro anos, às vezes oito. Sempre com novidades ruins, reformas superficiais. “Estupro culposo” é como chamam, né? Meu corpo é público, minha vida é pública e a miséria também é pública. O Brasil vive um Estado de exceção, em que se pratica a necropolítica. Vivemos em genocídio do brasileiro indígena, do brasileiro negro e do brasileiro pobre desde 1500. Pronto. Da minha indignação, tá dita. E pode editar se quiser.


Mas as eleições municipais sinalizam novos ventos políticos, as frestas indicam novas possibilidades. Onde vai sair essa reportagem? O Pão? O Povo? O Pasquim? El País?


Conhecida como Coração da Cidade, meu nome é Ferreira, a Mãe Ferreira. Não consigo trazer o teu amor de volta, porque você nunca teve amor, não vou mentir. Tem um cajueiro bom de sombra aqui… Seja bem-vinda ao clube!



*Carlos Donisete é sociólogo e integra o Movimento Nacional de População de Rua.


**O conteúdo desta crônica é de responsabilidade de seu autor e não necessariamente reflete a linha editorial do Portal da Liga.


***Esta crônica foi produzida no âmbito da Formação de Articulistas da Liga, formação oferecida a representantes de movimentos sociais pela Liga Experimental de Comunicação, projeto de extensão dos cursos de Jornalismo e de Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Ceará (UFC).

bottom of page