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  • Vitória Rodrigues

Psiquiatria Humanizada


“Aquilo ali é o inferno, eu não desejo nem para o meu pior inimigo”. Em acordo com a família, J. Albuquerque decidiu se internar em uma clínica de reabilitação psiquiátrica para tratar sua depressão e síndrome de Borderline. Mas o que ela não imaginava é que seriam os dez piores dias de sua vida. E infelizmente essa é a realidade encontrada por vários pacientes que necessitam de internação. E é por isso que, há décadas, o movimento antimanicomial luta pela humanização do tratamento de doentes mentais.

A loucura era vista como mais um motivo para marginalizar as pessoas. Ao invés de tratamento, a solução encontrada era esquecê-las em manicômios, onde eram maltratados constantemente. No Brasil, o primeiro hospício foi inaugurado em 1852, Rio de Janeiro, durante o império de Dom Pedro II, mas foi o Hospital Colônia de Barbacena que marcou negativamente a trajetória da luta pela saúde mental dos brasileiros. Localizado em uma cidade interiorana de Minas Gerais, o Colônia ficou conhecido devido aos casos chocantes de torturas e maus-tratos contra seus pacientes, e já acomodou uma superlotação de 5 mil pessoas em um lugar projetado para 200. As mortes por eletrochoque, fome ou descuido com a saúde física — sim, as pessoas morriam por falta de cuidado em um hospital — foram inúmeras.

Até que o médico italiano Franco Basaglia iniciou um movimento de reforma contra as atitudes desumanas que ocorriam dentro dos hospitais psiquiátricos. Em 1993, aconteceu o I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em Salvador e, de lá para cá, foram anos de uma busca por uma transformação radical nas relações sociedade/louco/loucura com base em várias dimensões do processo da Reforma Psiquiátrica.


Em meio ao movimento de luta pela reforma psiquiátrica, pessoas se mobilizam a favor da causa, como é o exemplo de Camila Moreira, enfermeira e ativista da causa que concedeu entrevista para o Portal da Liga ano passado e falou: “O manicômio se transformou num depósito de gente, e isso é desumano demais! Ainda hoje vejo profissionais da saúde que trazem a ideia de que para tratar transtorno mental é preciso isolar. Então é um trabalho diário para desconstruir essas crenças e dignificar o cuidado.”

Até setembro de 2012, funcionava no bairro Benfica um dos hospitais psiquiátricos mais conhecidos de Fortaleza, o Mira y López. O então coordenador das Redes de Atenção Primária e Psicossocial, Rui Gouveia, disse em uma entrevista que a demolição do hospital representou um marco na reforma psiquiátrica na cidade. Seria uma forma de defender o que a luta antimanicomial tanto prega: a maior integração do paciente com a sociedade.


A esperança que virou pesadelo

Jéssica Albuquerque tem 28 anos, é auxiliar de laboratório e, em 2019, optou por se internar em uma clínica particular para tratar sua depressão grave e síndrome de Borderline. Ela e a família desembolsaram cerca de R$ 4 mil para pagar dez dias de internação. Ela escolheu pagar por um tratamento particular após ouvir relatos negativos de ex-pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). “Na minha adolescência, eu tinha uma vizinha que ficava internada em um hospital, na época era até o Mira y López. Sempre que ela voltava, era cheia de piolhos, relatava que tinha sido estuprada, que tocavam nela, umas coisas bem aterrorizantes”. Em seu pensamento, Jéssica achava que na clínica iria receber o melhor atendimento, ser bem cuidada e voltar para casa melhor. Mas não foi nada disso o que aconteceu.

Logo de início, o seu contato com a família foi suspenso, e somente após sete dias conseguiu falar com seu filho, que na época tinha apenas um ano e alguns meses. Apesar de suas doenças, Jéssica estava em sã consciência, mas muitas vezes foi tratada como louca. Ela compartilhou o quarto com uma paciente diagnosticada com esquizofrenia e que relatava sofrer com a abstinência de drogas e isso foi motivo para não ter noites de sono sossegada. “Eu vivia com medo. Essa pessoa que dormia comigo me tocava durante a noite. Eu dormia com um pano no rosto e sentia ela tocando na minha perna".

"Eu fiquei com um trauma psicológico maior do que eu já tinha desse período que eu passei de dez dias lá. O meu transtorno triplicou depois que eu voltei de lá. Eu não dormia, eu tinha medo. Era como se eu tivesse desenvolvendo sindrome do pânico, um pavor de ver alguém e querer me matar, me perserguir", detalha.

O que sempre se espera de um serviço particular é que lhe sejam dadas condições melhores do que no público, mas será que é aceitável uma idosa passar a tarde urinada, sem ter uma técnica de enfermagem para lhe banhar? Ou então que a enfermeira responsável não soubesse pulsar uma veia? A humanização tão falada no século XXI parece passar longe da realidade dos pacientes mentais. “Eu me senti presa, como um bicho dentro de uma jaula” são palavras da auxiliar de laboratório, e foram “apenas” 10 dias, imagine quem é literalmente esquecido pela família.

"Eu não vejo melhoria. A pessoa que tem problema mental é realmente tratada como um ser excluído, um ser que não vale nada, que pode ficar em qualquer canto, comer qualquer coisa, como se perdesse o valor por ter um problema mental, e oferecesse um risco tanto a si quanto aos outros. Infelizmente, hoje é o que eu vejo".

Hoje, 18 de Maio, é o dia da Luta Antimanicomial, e o Brasil precisa ouvir mais esse movimento, saber que doença mental não é loucura e que os pacientes não devem ser marginalizados. Há espaço para todos na sociedade, excluir nunca vai ser a melhor opção. A ciência tem avançado cada dia mais, não é possível que a Psiquiatria não tenha ido junto.



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