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  • Carlos Donisete

Um perto-longe

Como diz o cearense, estamos “meio perto, meio longe” de encontrarmos as perguntas e as respostas apropriadas para a relação entre drogas e população de rua; neste artigo de opinião, o sociólogo Carlos Donisete reflete sobre o tema com sua velha dose de sátira e de crítica às políticas públicas (não) adotadas em prol dessa população


Convido-os para um papo reto sobre a relação entre morador de rua e drogas, junção de temas tabus em nossa sociedade. Para tanto, algumas BASES se fazem necessárias: morador de rua como aquele que “mora na rua”, que está no papelão, retirante das grandes tragédias individuais. A situação de rua como ponta do iceberg do caos, processo de morte anunciada. Quando falamos sobre drogas, refiro-me às ilícitas: crack, maconha, cocaína, que são as mais usadas por esse público. Lembrando que nem toda pessoa que usa drogas se torna usuária crônica.



Reprodução: Maurício Vieira / N/A


DÚVIDAS


Aqui começa a minha doação de dúvidas: as drogas levam as pessoas para a rua ou a situação de rua é mantida pelas drogas? Uma outra beliscada é: por que a lombra, o prazer em usar drogas, é completamente desconsiderado pelas instituições?

Por que algumas pessoas desenvolvem “alergia” às drogas e a maioria não? Por que o Estado não quer resolver a questão das drogas? Onde, quando, como, por que o amor foi substituído pelo medo? É possível morar nas ruas e ficar “de cara”? Por que o poder público não cumpre seu papel nas várias camadas dessa situação, a exemplo da fiscalização das entidades de apoio, nas quais, invariavelmente, os direitos dos moradores de rua são violados.


DÍVIDAS


É muito difícil sair das ruas porque, em meio a todos esses desequilíbrios, a pessoa precisa querer e os esquemas falharem pouco… sendo que o Estado é o primeiro a infringir direitos ao sucatear o sistema público de saúde, precarizar a educação pública, incentivar agricultura e pecuária voltadas à exportação, e ao construir uma política desumana de combate às drogas (encarceramento da população preta e pobre). Necropolítica que fala, né?!

As instituições com as suas formas de funcionamento acabam por institucionalizar as pessoas, que se tornam “viciadas” na vida das ruas. Ignora-se a política de redução de danos como possibilidade para quem está no papelão, pois os grupos de autoajuda não dão conta de lidar com essa situação. O mesmo vale para as comunidades terapêuticas, que prestam serviços de baixa qualidade, só visam ao lucro e colaboram para higienização social. Realidade mais complexa são das instituições religiosas que misturam assistência social com caridade e resultam numa ineficiência tremenda. É aquela coisa: o problema do catolicismo são os católicos, o problema do espiritismo são os espíritas, o problema do candomblé são os candomblecistas...

E, por último, e não menos importante: o vício no “não”. São tantas negativas que a gente se acostuma e para de sonhar.

DÁDIVAS


Temos como sugestões: controlar o uso de drogas através da diminuição, substituição ou abstinência. Contudo, sempre com o alerta de que manter esse controle requer um esforço em rede, para quando um falhar poder contar com o outro. Ter outras possibilidades diminui o foco nas drogas, fazendo surgir outras lombras: cuidados com a saúde física, mental, espiritual, financeira, amorosa. Às vezes, faz-se necessário — com muitas ressalvas, é verdade — lançar mão do uso de comunidades terapêuticas, sem esquecer que a família do morador de rua também precisa de cuidados para que possa ser recuperada.

Quanto mais estudos, informações, maior será a visibilidade, a oportunidade, pois sem dados não temos orçamento (estamos às vésperas da realização de um censo da população de rua em Fortaleza, cujo último levantamento ainda é de 2014, computando uma população de 1718 moradores). Cuidar dá trabalho, mas é papel do Estado cuidar dos seus cidadãos, né?! É fundamental dar condições para a pessoa se desenvolver como ser humano em sua plenitude, com o auxílio do velho e batido autoconhecimento.

Lembrar que as sugestões acima não são receita de bolo e que culpar as vítimas e focar na meritocracia é o caminho mais fácil para o desastre. Perto-longe estamos das respostas; perto-longe estamos das perguntas. Estas anotações são de agosto de 2021. Acabei de economizar algum tempo em terapia. Obrigada, por nada. E as tuas lombras, quais são?

Laroye.


* Carlos Donisete é sociólogo e integra o Movimento Nacional de População de Rua.

** O conteúdo deste artigo de opinião é de responsabilidade de seu autor e não necessariamente reflete a linha editorial do Portal da Liga.

*** Este artigo de opinião foi produzido no âmbito da Formação de Articulistas da Liga, formação oferecida a representantes de movimentos sociais pela Liga Experimental de Comunicação, projeto de extensão dos cursos de Jornalismo e de Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Ceará (UFC).


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