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  • Marina Gomes e Rodrigo Salviano

Sem dor no fim

“Tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.” - Rubem Alves

Por que morremos? Talvez essa seja uma das perguntas mais feitas de todos os tempos. Morte e vida são aspectos presentes no processo de trabalho em saúde, e são cruzados pela forma como a sociedade se relaciona com as doenças, os doentes e os resultados destes processos. A morte é o mistério inevitável que atravessa a existência de todos os seres vivos. No mundo, cerca de 50 milhões de pessoas morrem anualmente. Isso corresponde a 136 mil pessoas por dia, ou uma pessoa por segundo. Seguindo a lógica, a cada minuto, cerca de nove famílias perdem um ente querido. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), 63% das mortes no mundo são causadas por Doenças Crônicas Não Transmissíveis. As DCNT, no Brasil, são responsáveis por 72,6% das mortes, segundo o Sistema de Informação da Mortalidade (SIM) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Cerca de 57,4 milhões de brasileiros possuem pelo menos uma doença crônica não transmissível (DCNT), segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Doenças crônicas são caracterizadas por serem multifatoriais de longa duração e por desenvolverem-se no decorrer da vida, acompanhando o paciente por períodos prolongados e, certas vezes, permanentes. Alguns tipos de câncer, doenças neurológicas e degenerativas progressivas e doenças infecciosas, como a Aids, são exemplos de enfermidades que atingem mais de dois terços da população brasileira. A vida de pessoas diagnosticadas com doenças graves e potencialmente danosas é, muitas vezes, perpassada por tratamentos agressivos e desgastantes que visam remediar e reverter o quadro negativo. Até a chegada da frase “não há mais nada a se fazer”, e mesmo depois da interrupção do tratamento, o caminho é tortuoso e atroz nos diferentes aspectos da existência.

Em 1963, a britânica Dame Cicely Saunders iniciou um projeto para a criação de uma instituição que se dedicasse a acolher pacientes sem chances de cura. Inaugurou o St Christopher’s Hospice em 1967, o primeiro “hospice”, uma espécie de albergue, para esse tipo de doentes. A equipe de Saunders reunia especialistas em controle de dor e sintomas com profissionais dedicados às áreas de cuidado humanitário, ensino e pesquisa clínica. Este hospice foi também pioneiro no campo dos Cuidados Paliativos, que agora está difundido em todo o mundo.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os cuidados paliativos, também chamados de cuidados de conforto, cuidados de suporte e gerenciamento de sintomas, se referem à assistência integral oferecida para pacientes e familiares diante de uma doença grave que ameace a continuidade da vida. O objetivo desses cuidados é buscar alternativas para minimizar os sintomas de desconforto que podem acompanhar o paciente, sejam eles causados pela doença ou pelo tratamento.

A medicina paliativa é um ramo da área que, por recomendação da OMS, deve ser oferecido para todo e qualquer paciente que seja portador de alterações relacionadas a doenças potencialmente mortais a serem abordadas de forma precoce para a prevenção do sofrimento. Mesmo com todo o progresso atingido pelo movimento hospice, iniciado na década de 1960, este ramo segue pouco conhecido entre os civis e é alvo de muito preconceito pela comunidade médica. Os cuidados paliativos buscam enxergar o paciente de uma forma mais humana, tratando seu sofrimento físico e incômodos emocionais, sociais e familiares. Segundo a oncologista, coordenadora do programa de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM) de São Paulo e idealizadora do Instituto Paliar, Dalva Yukie Matsumoto, o cuidado paliativo deve ser introduzido “para controle adequado e prevenção de sintomas que são impactantes, como a dor e outros sintomas”, que tragam sofrimento à pessoa.

“Eu faço parte da geração pioneira do cuidado paliativo no Brasil, e no começo nós tínhamos muitas dificuldades, porque até o nome paliativo tem uma conotação pejorativa. Quando alguém fala que algo é paliativo, é aquela coisa mais ou menos. Então nesses mais de dez anos (de atuação), a gente tem reforçado muito a compreensão de que o cuidado paliativo não é uma atividade menor e também não é somente relacionado ao paciente que está morrendo.” As palavras de Dalva Yukie refletem a realidade percebida por diversos profissionais do ramo ainda pouco difundido no Brasil. A cultura da perseverança e do “não desistir nunca”, de tratamentos que se tornam dispendiosos e inviáveis para pacientes terminais, podem, por vezes, custar sua qualidade de vida e um tempo precioso que poderia ser passado de forma indolor e sem tormento.

De acordo com a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), introduzir o paciente ao processo de cuidados paliativos não significa que não haja mais nada a fazer por ele ou por sua família. Diferente do que muitos profissionais, pacientes e familiares acreditam, os cuidados paliativos não são a última opção: “A comunidade médica ainda tem muita resistência porque entende que o cuidado paliativo é um cuidado voltado à terminalidade da vida. E a grande maioria dos médicos, das diferentes especialidades, acredita que eles são competentes para lidar com isso. Isso é um grande impeditivo para que essas pessoas abram a mente e o coração para uma modalidade que tem para mostrar um foco diferente de ver o paciente e a doença”, explica Dalva.

Utilizar-se desses cuidados desde o início do tratamento curativo possibilita uma jornada menos dolorosa para o paciente e sua família. A forma como as técnicas são executadas depende das especificidades de cada caso, como afirma a psicóloga especialista em cuidados paliativos e oncologia, Julia Shioga: “O cuidado paliativo lida com o sofrimento da pessoa. E o que é o sofrimento? Não sei! O sofrimento é um conceito muito singular. O que é sofrimento para mim pode ser prazer para você, e vice-versa”. Julia destaca que cada pessoa possui uma construção diferente do que entende como dor, prazer, sofrimento, fazendo-se necessário buscar “entender a partir da perspectiva do paciente, o que é o sofrimento dele, para assim lidar com o caso da melhor forma possível”.

Difusão No Brasil, segundo dados da ANCP, temos ao todo 160 centros médicos que disponibilizam o cuidado paliativo. O número, no entanto, é pequeno e os centros são distribuídos de forma desigual, com 86 deles só na região Sudeste. Em Fortaleza, somamos nove centros, que incluem o Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital Universitário Walter Cantídio, do Hospital Regional Unimed Fortaleza, do Hospital São Carlos, o Programa de Assistência Ventilatória Domiciliar do Hospital Infantil Albert Sabin, a Equipe de Cuidados Integrais à Saúde do Hospital Otoclínica e a Equipe de Cuidados Paliativos do Hospital Geral de Fortaleza (HGF).

O clínico responsável pelo núcleo de cuidados paliativos do Instituto do Câncer do Ceará (ICC), Raimundo Felipe, conta que o número de profissionais especializados em cuidados paliativos ainda é muito escasso, um dos motivos pelo qual a equipe, formada pelo clínico, uma enfermeira, uma assistente social, uma psicóloga e um motorista, não conta ainda com o capelão, o profissional que cuida do âmbito espiritual do paciente. “Aqui a demanda é muito grande, atualmente atendemos cerca de 300 pessoas no ambulatório. Atendemos mais 33 em visita domiciliar, mas já chegamos a atender 50. O ideal é menos de 30”, completa, se referindo à farta demanda que a equipe deve atender.

De acordo com a especialista do Instituto Paliar, Dalva Yukie, esse paciente deve ser visto sob todos os seus aspectos, não somente o físico. “O cuidado paliativo é uma forma de acolher pacientes e familiares na qual é necessário um profissional com conhecimento técnico adequado sobre controle de sintomas físicos e outras modalidades, como a abordagem de sintomas emocionais e espirituais como um todo”, explica. ​O paciente, ao ser diagnosticado com doença grave, atravessa uma série de questões. A fragilidade da vida, a palpabilidade da morte, a concretude do desafio. Tamanhos questionamentos, paralelos à necessidade de sobreviver, podem debilitar o paciente em todos esses aspectos. Por isso o tratamento não deve ser guiado por um só profissional, mas por uma equipe especializada capaz de lidar com os diferentes desafios e em parceria com o paciente e sua família.

A equipe deve atuar de acordo com as necessidades específicas de cada paciente, avaliando e tratando os sintomas físicos de desconforto, como dor, fadiga, cansaço, falta de ar, náusea, entre outros, além de cuidar das necessidades emocionais, sociais, familiares e espirituais do paciente e de sua família. À medida que a doença crônica progressiva evolui e o tratamento curativo perde sua eficácia em controlá-la ou revertê-la, os cuidados paliativos tornam-se ainda mais necessários, se configurando exclusivos em virtude do quadro de incurabilidade.

Esse funcionamento propicia a construção de um vínculo de confiança entre a tríade paciente-família-equipe, o que facilita e contribui para planejamento e desenvolvimento de ações estratégicas de assistência integral e contínua. Um centro médico deve ser formado por, no mínimo, quatro profissionais. A Sociedade Europeia por Cuidados Paliativos (European Association for Palliative Care - EAPC) sugere que haja idealmente um médico, um enfermeiro, um assistente social e um psicólogo. A partir do crescimento da demanda e do aumento da complexidade do centro, devem ser acrescentados outros profissionais, como técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, nutricionistas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e até educadores físicos, podendo seguir um caráter multiprofissional ou interprofissional.

“Dentro dessa perspectiva o prefixo multi significa que eu tenho vários profissionais juntos atuando com um paciente, isso implica que cada profissional está dentro da sua casinha. Já quando falamos de uma equipe interprofissional, eu tenho necessariamente uma interação entre a equipe. Então eu, psicóloga, não vou me importar apenas com os aspectos psicológicos desse paciente, mas também com aspectos fisiológicos, de mobilidade física, nutricionais, se esse paciente sente dor, etc. Tudo que gerar desconforto para esse paciente é importante pra mim”, explica Julia Shioga. A psicóloga afirma que os profissionais da equipe precisam sair de seus quadrados e “reconhecer que outras áreas do conhecimento são tão importantes, também, para esse paciente”.

Os cuidados paliativos podem abranger todo e qualquer paciente que tenha qualquer doença que ameace sua integridade, abarcando pessoas com algum comprometimento neurológico, congênito ou adquirido, pacientes com atrofias musculares, doenças nas quais se perde totalmente a capacidade de movimentação, pacientes em processo demencial - como alzheimer, parkinson, demência vascular - e também os pacientes oncológicos. Hoje, até mesmo médicos veterinários estão se especializando em cuidados paliativos para tratar dos animais doentes, devido o crescimento do cuidado com animais de estimação. “Tem crescido bastante esse movimento no Brasil, porque as pessoas consideram os bichos como parte da família. Assim como eu quero cuidado paliativo pro meu familiar, eu também quero pro meu animal”, disse a médica Dalva Matsumoto.

Acesso De acordo com a oncologista, tem havido crescimento do movimento na assistência básica à saúde. A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade tem abraçado a ideia do cuidado paliativo e, segundo Matsumoto, muitos gestores têm passado a ver o serviço não mais como desnecessário, mas como uma forma eficaz e, a longo prazo, com custo benefício válido. ”Apenas alguns hospitais públicos têm o serviço. Agora, o SUS como um todo ainda não tem um programa de cuidado paliativo. É preciso que hajam políticas públicas para garantir o acesso ao sistema hospitalar dos pacientes, e política pública quer dizer promover treinamento dos profissionais que lidam com isso”, avalia a médica.

Do ponto de vista de gestão, os benefícios surgem a médio e longo prazo: “O benefício é que, se eu ofereço cuidado paliativo adequado, eu distribuo mais adequadamente o recurso financeiro. Eu deixo de gastar dinheiro desnecessário com procedimentos complexos e caros, com medicamentos caros desnecessários e com lugares caros”, diz a médica. Por exemplo, um paciente que fica numa UTI tem um custo de quatro a cinco vezes maior do que o que ficaria em uma enfermaria, em uma casa de apoio ou outro lugar que ele pudesse receber cuidado paliativo apropriado.

Para os pacientes, as melhorias vão muito além do material. O ganho em qualidade de vida e até longevidade superam qualquer resistência ou preconceito com o método que tem como objetivo exatamente isso. “O principal benefício imediato é você acolher de forma adequada o sofrimento dessas pessoas. Porque um profissional que faz cuidado paliativo é treinado pra cuidar de uma dor, de uma falta de ar, de um enjoo ou de uma fadiga de maneira mais adequada, ele tem treinamento pra isso. A equipe multiprofissional tem condição de acolher todos os outros problemas. Angústias, problemas sociais, problemas familiares, que afetam o núcleo que é paciente e família e sofre com uma doença”, completa a doutora.

Relação com o fim da vida e vínculos criados O fenômeno do adoecimento traz ao paciente e seus familiares questões relacionadas à finitude e morte, desencadeando uma série de efeitos psicológicos e emocionais que, assim como o processo curativo, precisam de bastante atenção para que se possa reduzir e prevenir que essa série de reações não se desenvolvam em transtorno psicológico ou psiquiátrico mais severo.“Dentro da psicologia, a gente fala que os pacientes que sofrem um impacto muito grande do diagnóstico e da doença, ou da comunicação de uma má notícia, por exemplo, quando o médico comunica que aquele indivíduo não tem mais possibilidade de ser curado, o paciente a partir daí desenvolve o que chamamos de transtorno de ajustamento”, explica a psicóloga Julia Shioga, afirmando que dentro dessa realidade, a assistência psicológica se faz crucial no processo de cuidado de pacientes.

A psicologia ajuda o enfermo a trabalhar processos de finitude e morte, temas que são pouco discutidos na cultura ocidental contemporânea, sendo considerados até mesmo um tabu. “Trabalhamos em um processo de conscientização e aceitação desse novo lugar ocupado pelo paciente, o lugar de uma pessoa adoecida, mas acima disso buscamos esclarecer que dentro da sua doença é possível ele ser saudável”, afirma Julia. Os médicos paliativistas não encaram a morte como um vilão, mas sim como um aspecto que é inerente ao processo de vida do ser humano, como um fato, uma realidade que irá acontecer com todos, e junto a isso preservam a vida enquanto ela existir.

Os profissionais paliativistas trabalham diretamente com a morte e o processo de morrer. Os vínculos criados entre pacientes, profissionais da saúde e cuidadores externaliza a complexa possibilidade de relação interpessoal entre esses indivíduos. O trabalho em saúde é carregado de múltiplas dimensões e problemas, assim, o campo científico e a razão são insuficientes para lidar com toda essa complexidade, exigindo desses profissionais, também, uma certa intuição, emoção e a sensibilidade.

Os cuidados paliativos possibilitam um novo olhar sobre o envolvimento entre profissional e paciente, conexão que muitas vezes é excluída durante o tratamento e desestimulada durante a formação dos profissionais. Algo que penetra nos espaços terapêuticos, onde a pessoa que se envolve, com frequência, não é vista como profissional, e onde outras formas de cuidado, além da técnica, são pouco valorizadas pelos próprios profissionais de saúde.

“Durante toda a faculdade e residência, os meus mestres diziam que eu não me envolvesse emocionalmente porque eu iria perder a capacidade de tomar a decisão adequada. Eu aprendi, no decorrer dos mais de 40 anos de medicina, que essa é uma das maiores mentiras que meus professores disseram.” afirma Dalva Matsumoto sobre a cultura de não se vincular à pacientes. Para a médica, a única maneira de ser um bom profissional, não só da área da saúde, é através do envolvimento emocional: “Você só consegue ser bom quando você consegue se colocar no lugar do outro através de uma coisa chamada empatia. É, de verdade, entender a dor do outro. Não é sofrer a dor do outro, é entender”.

Para Dalva, quando se entende a dor do outro, é possível ter o distanciamento necessário para não se deixar abater ou ferir por essa dor. Ela considera que, para cuidar inteiramente de uma pessoa, o profissional precisa ter desenvolvido e integrado, em si, as dimensões racional, sensitiva, afetiva e intuitiva. “Eu vou sofrer, mas como profissional, eu tenho conhecimentos adequados para separar as coisas e continuar tendo a capacidade de tomar decisões com sentimento. Essa é a única forma de ser um bom profissional da área de assistência à saúde”, afirma.

A psicóloga Julia Shioga explica que, no âmbito pessoal, o profissional precisa ter uma série de preparos para lidar com a perspectiva da morte e que é impossível não se abalar de alguma forma: “É lógico que, enquanto pessoa, diante da morte de um paciente, eu sofro! É um luto que eu vou elaborar. Mas depois de alguns anos de experiência e de amadurecimento, eu já consigo talvez diferenciar a Julia pessoa e a Julia profissional. Além disso, como eu encaro a morte como um processo natural, pra mim é mais fácil aceitar essa transição, pois eu lembro de todos os benefícios que consegui trazer para esse paciente”.

Julia esclarece como os cuidados paliativos ajudam que a partida do paciente ocorra no momento certo, após o ele ter conseguido fechar os seus ciclos, e lembra de alguns processos onde acompanhou os últimos suspiros de pacientes: “Por um lado parece assustador pra quem escuta, mas para mim parece confortante de perceber que aquela pessoa foi em paz. Quando eu lido com uma família que eu já estava acompanhando, esse momento se torna muito mais tranquilo, às vezes dá vontade de chorar, mas é um choro que vem expressar a emoção de você ter participado de um papel tão importante no momento tão importante na vida de todos nós. O cuidado paliativo trabalha com qualidade de vida e qualidade de morte. Então, se eu fui importante para que uma pessoa tivesse uma boa morte, como a gente chama, isso para mim é tudo”.

 

A reportagem especial 'Cuidados Paliativos' foi produzida por Marina Gomes e Rodrigo Salviano para a cadeira de impresso I do quarto semestre do Curso de Jornalismo da UFC.

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