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  • Sabrine Araújo e Yasmin Nascimento

Rompendo a invisibilidade e o preconceito: o Islã no Ceará

O Centro Cultural Islâmico Beneficente do Ceará, sediado no bairro Jacarecanga, busca facilitar a interação e auxiliar o acesso à religião pelos muçulmanos que vivem no Ceará

A sala de oração tem o nome de mussala; considerada sagrada, é dividida por um vidro. Homens e mulheres que ali se reúnem ficam em espaços distintos. Os sapatos ficam fora dos ambientes. Há pouquíssimos móveis, pois o ambiente é ocupado pelos corpos que se deitam durante a salat, como é chamada a oração, realizada cinco vezes ao dia: ao amanhecer (farj), ao meio-dia (dhuhr), à tarde (asr), ao pôr do sol (maghrib) e à noite (ishaa).

O Centro Cultural Islâmico Beneficente do Ceará é um pequeno prédio situado na rua São Paulo, região central de Fortaleza, dividindo espaço com prédios residenciais. O Centro abre apenas às sextas, dia em que é possível ver, nas ruas adjacentes, uma certa movimentação de mulheres indo para lá utilizando a tradicional vestimenta muçulmana, o hijab, gerando curiosidade nas pessoas que por ali transitam.

Originalmente paulista e residente de Fortaleza, Aishaa Barletta, nome islâmico pelo qual é conhecida há quatro anos, é formada em biomedicina e trabalha em projeto do Instituto Butantan na Universidade Federal do Ceará (UFC). Criada em família cristã, ela conta que sempre se questionou sobre todas as religiões, apesar de acreditar em Deus. Até então, ela havia negado fazer eucaristia e crisma, porque não conseguia concordar com o catolicismo, o que a fez estudar outras as religiões possíveis em busca de respostas.

Em 2014, estudando para o Ciências Sem Fronteiras, programa criado pelo Governo Federal para incentivar a pesquisa acadêmica no exterior, quis aprender italiano e logo começou a conversar com diversas pessoas ao redor do mundo para treinar a língua. Assim, ela conheceu diversas pessoas praticantes do islã, desenvolvendo um interesse necessário para iniciar seus devoção. Após um ano estudando, Aishaa relatou não ter encontrado nada que ela realmente não conseguisse obter explicação ou que não concordasse. Como resultado, tornou-se muçulmana em 2015, logo após o réveillon, no calendário gregoriano que é o tradicionalmente adotado no Ocidente.

O calendário islâmico, diferentemente, é lunar. O mês começa e termina de acordo com a lua, por isso é sempre composto por 29 ou 30 dias. Se no dia 29 for lua nova, o mês termina. Se não for, termina no dia 30. No dia 27 de setembro, quando a Liga se encontrou com Aishaa, era o final do primeiro mês do calendário islâmico, ou seja, para a comunidade, o ano começou recentemente. A mudança não está apenas na contagem, mas na próxima experiência do tempo e das datas comemorativas. Seguindo o islã, Aishaa deixou de comemorar dias específicos, como o aniversário, passando a enaltecer, seguindo a tradição, eventos, como o fim do jejum.

DIFICULDADES

Aishaa conta que, antes de seguir o Islã, trabalhava em um laboratório de pesquisa com regras de vestimenta adequada, como o uso de uma calça específica. Quando passou a usar o véu e a saia muçulmana, ela foi ameaçada de demissão pela empresa várias vezes, um constrangimento que, ela avalia, era derivado da falta de discernimento dos empregadores para lidar com a diversidade religiosa.

 

“No início, há a ignorância e a falta de conhecimento do pessoal. Porém, à medida em que vêem muçulmanos com mais frequência, eles vão se adaptando. Moro há 15 minutos do meu trabalho, então vou e volto andando. No caminho que eu fazia, a princípio, as pessoas me olhavam feio, xingavam, fechavam a porta, me chamavam de “mulher-bomba”. Hoje em dia, as mesmas pessoas que faziam isso comigo, dão “bom dia” ou “boa tarde”. Inclusive, teve um dia que eu estava tomando picolé e me sujei, porque o vento estava contra. Elas viram e até me ofereceram para entrar na casa, lavar a mão... as pessoas são gentis com a gente agora e até nos defendem de possíveis intolerâncias”, relata Aishaa.

 

Mesmo entre as mulheres, a incompreensão acaba levando à opressão, ainda que com o objetivo de garantir direitos. Essa contradição tem sido debatida pelo menos desde 2010, quando a França aprovou uma lei que proíbe o uso do véu islâmico integral (burca e niqab) em espaços públicos, o que foi considerado uma violação aos direitos humanos pelo Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2018.

Aishaa diz não se sentir acolhida da mesma forma das demais mulheres. Ela comenta que as mesmas mulheres que lutam pelos direitos de não se raspar, por exemplo, indiretamente obrigam as islamitas a agirem do mesmo jeito e a seguirem as mesmas ideologias. Contudo, para as pessoas islâmicas, uma das obrigações é a depilação em determinadas regiões corporais, independente do gênero. Aishaa avalia que a incompreensão é negativa e vai de encontro à defesa da liberdade, uma vez que a opressão é justamente obrigar alguém a ter a mesma ideia que a sua. “Elas querem colocar na minha cabeça que eu sou oprimida, porém é completamente ao contrário, pois não me sinto nenhum pouco oprimida”, afirma.

Em uma explicação histórica da religião, Alá criou todas as criaturas e, assim, sabe o que é melhor para cada um. Alá é justo. Então, as mulheres muçulmanas não devem se sentir oprimidas de nenhuma forma, pois ele deu direitos a elas. Há mais de 1400 anos, o profeta Muhammad surgiu em uma sociedade em que as mulheres não tinham direito de herança, tinham que tomar o nome do marido, casavam por interesse dos pais, etc. O islã veio nessa mesma sociedade, dando todos esses direitos às mulheres.

IMIGRANTE MUÇULMANO

No Centro Cultural, há muçulmanos cearenses e de todas as regiões do Brasil, mas é possível ver, também, que uma grande parcela dos frequentadores é estrangeira, provenientes de países como Síria e Guiné-Bissau.

Atual frequentador do Centro Beneficente do Ceará e imigrante da Argélia, Radouane Mekhnache nasceu inserido no islã e relata que ficou surpreso ao encontrar uma grande quantidade de muçulmanos vivendo no Ceará, uma vez que, antes de residir em Fortaleza, acreditava não existirem praticantes do Islã no estado. Para ele, é bastante agradável encontrar brasileiros muçulmanos, pois mostra que a religião está presente em todos os lugares.

Segundo Radouane, a maior dificuldade de praticar o Islã na capital cearense é o fato de não possuir uma mesquita na cidade para conectar os praticantes e facilitar o cumprimento das orações, porque, enquanto a mussala abre apenas às sextas-feiras, a mesquita é aberta diariamente. A mesquita é qualquer edifício dedicado ao culto da religião muçulmana, enquanto a mussala é, em específico, a sala de orações.

PRECONCEITO

O responsável pelo Centro Cultural Beneficente Islâmico do Ceará, Yohya Simões, marido de Aishaa, relata que já sofreu bastante preconceito, mas diz ser pior quando está com sua esposa, pois a roupa da mulher islamita é mais evidente que a do homem. Apesar da barba obrigatória, os homens saem com roupas consideradas “tradicionais”, como calça, camisa social e tênis. Quanto às vestimentas masculinas, o que alastra o preconceito é a Takia, a “touquinha islâmica”, termo utilizado pelo entrevistado.

Ele revela que, enquanto usava a Takia, pessoas já passaram de carro gritando “terrorista”, “homem-bomba” e outros termos pejorativos que generalizam e inferiorizam a população islamita. Outras pessoas fotografaram. Yohya conta, ainda, que já proferiram para Aishaa frases como “vai trocar essa roupa” e “por que você está vestida assim? Você está no Brasil”.

Outro preconceito exposto é a imposição de outra religião em cima do islã, com frases do tipo “Jesus te ama” ou “Jesus vai voltar”. Episódios desse tipo revelam desacordos onde poderiam haver encontros. Os islamitas acreditam em Jesus, só não creem que ele é Deus ou divino, mas, sim, um servo e mensageiro de Alá.

 

“Existe um versículo no alcorão que diz, basicamente, ‘para vocês, a religião de vocês. Para mim, a minha religião’. Não tenho capacidade de mudar o seu coração e te fazer virar muçulmano. Não há conversão forçada no islã, pois se for algo obrigatório, será inválido, uma vez que a pessoa não acredita verdadeiramente na religião”, afirma Yohya.

 

Segundo Yohya, o principal problema do preconceito é a generalização de um ideal da comunidade islâmica devido a ações pontuais feitas por indivíduos extremistas. Em suma, a intolerância enraizada faz crer que, se um homem não-muçulmano, por exemplo, bateu na mulher, apenas ele é culpado. Se um muçulmano bate na mulher, é o “muçulmano opressor” que bateu na mulher. Ou seja, generaliza-se a conduta para adeptos da religião inteira. Porém, o islã prega exatamente o contrário. Yohya explica que, segundo o profeta Muhammad, “o melhor dentre vós é aquele que é melhor para as mulheres”. Em resumo, há pessoas empáticas, há quem respeite, há quem defenda, há quem se abstém e há quem é agressivo.

Yohya afirma que nunca ouviu relatos de atitudes extremistas dos demais em Fortaleza. Contudo, ele citou algumas histórias de extremismo em São Paulo, como as de indivíduos na rua jogando pedras em mulheres muçulmanas ou arrancando seus hijab à força, que, para a religião, é uma humilhação pública, pois faz parte de suas vestimentas e é um utensílio sagrado.

O islamismo é religião que mais cresce no mundo, e no Ceará não é diferente. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, o Ceará concentra cerca de 141 adeptos do Islã, podendo contar com uma quantidade certamente maior nos dias de hoje. A tolerância e a maior facilidade em aceitar outras culturas da população brasileira — em comparação com países europeus — podem ser fatores determinantes desse crescimento. Contudo, a sociedade ainda necessita de uma certa preparação para aprender a viver com novas culturas e religiões e, assim, superar o fantasma do desconhecimento e da intolerância.

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