Segundo o historiador Adauto Leitão, na verdade, Fortaleza teria mais de 400 anos e haveria começado a se formar muito antes de 1654. Começaria a se formar, a partir da construção de uma fortaleza na Barra do Ceará. Hoje, há lá um monumento ao Marco Zero que é considerado por muitos o ponto de nascimento da capital cearense.
Ainda assim, podemos dizer que se desenvolveu acompanhando as margens do rio Pajeú e em torno do forte Nossa Senhora de Assunção, após a expulsão dos holandeses. Porém, somente em 1726, tornou-se uma vila.
A história da cidade é escrita em tortuosas linhas marcadas por disputas e constantes tentativas de apagamentos. Por mais que se tentem passar a borracha, as marcas ainda podem ser vislumbradas nas disputas territoriais que permeiam nossa cidade, desde as lutas dos indígenas contra os invasores europeus até as que ocorrem hoje, geradas por ocupações e disputas territoriais. A resistência do povo molda a cidade!
Muitas ocupações se tornaram bairros, como no período compreendido entre 1930 e 1955 em que surgiram as seguintes favelas na cidade: Cercado do Zé Padre (1930), Mucuripe (1933), Lagamar (1933), Morro do Ouro (1940), Varjota (1945), Meireles (1950), Papouquinho (1950) e Estrada de Ferro (1954).
Atualmente, Fortaleza se configura em um cenário em que os projetos de empreendimentos da especulação imobiliária, em sua ganância financeira, sufocam e expropriam a população menos favorecida. Trata-se de um combate de forças desiguais em que os poderosos donos do capital prevalecem.
Nessas circunstâncias se desenha um cenário onde a “cidade informal” cresce como alternativa habitacional aos mais pobres. Por cidade informal compreende-se moradias em situação irregular e que não atendem aos requisitos previstos nas leis que determinam condições socioambientais como: o uso e ocupação do solo, habitabilidade, segurança, formalização dos edifícios, acessibilidade e integração social.
Dessa maneira, se pinta um quadro de excesso de regulamentação que acaba dificultando e restringindo as possibilidades de uma moradia dentro das leis para boa parte da população. As legislações idealizam requisitos que parecem visar nortear condições de uma urbanização que promova o bem-estar social, porém, não compreendem a situação de quem não tem condições de construir ou comprar moradias dentro dessas exigências legais.
O ideal seria que essas premissas fossem acessíveis à toda a população. Porém, se o acesso a condições financeiras de assentar moradia dentro da legalidade não é democrático, a lei se torna inacessível e exclusiva.
De acordo com os dados da Habitafor, que dentre outras coisas gerencia a produção de unidades habitacionais na Cidade, indicam que 130 mil famílias compõem o déficit habitacional da capital cearense por residirem em estruturas inadequadas.
Entre 2017 e agosto de 2019, quase 4.500 atendimentos foram realizados no Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública do Ceará (Nuham). Só em 2019, foram 1.147, entre pedidos de aluguel social, regularização de ocupações, desapropriações e demolições de domicílios, indenizações, e assistência a famílias expulsas por facções criminosas e a pessoas vivendo em áreas de risco.
A demanda é urgente: todas as Regionais da Cidade têm pelo menos um conjunto de famílias vivendo em áreas de risco, conforme o Fortaleza em Mapas, sistema de dados georreferenciados da Prefeitura.
Vale a pena ressaltar, que muitos dos casos de desapropriação e demolição, são promovidos pelo próprio poder do aparato estatal, através da repressão policial. Como os constantes ataques que os moradores da Ocupação Carlos Marighella vêm sofrendo. Mesmo com a liminar que recomenda que os Tribunais de Justiça evitem ao máximo a expedição de ordens de reintegração de posse durante a pandemia da Covid-19.
O despejo de famílias no pior momento da pandemia e ainda com o estado sob lockdown viola frontalmente os direitos humanos dos ocupantes, principalmente o direito à vida.
No tocante aos direitos da população à condições de vida adequadas está o acesso à moradia digna, assegurada nos artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, que se refere a garantir políticas públicas necessárias ao provimento do bem-estar social.
A questão da moradia não se resume a ter uma casa, relaciona-se com o conjunto de necessidades primordiais da população, como as demandas de mobilidade urbana: acesso a linhas de ônibus que interligam a cidade para facilitar a circulação a todos os cantos da cidade e pavimentação.
Além disso, saneamento básico, manutenção de praças, para possibilitar um convívio social e coletivo da comunidade; iluminação e segurança, para uma caminhada tranquila, principalmente de mulheres, entre outras.
Como pontua o professor e arquiteto Renato Pequeno, no artigo Balanço das intervenções urbanísticas em assentamentos precários de Fortaleza, tais investimentos em políticas públicas, geralmente, tendem a atender setores residenciais com maior capacidade de consumo.
Esses setores, por sua vez, inclinam-se a preferir a edificação de uma cidade de indivíduos fechados em seus muros e prédios altos com arrojados e tecnológicos sistemas de segurança. No seu entorno, ruas vazias e solitárias.
Nesses termos, considerando ainda o advento da internet e dos computadores pessoais, o convívio em comunidade passa a se resumir em cumprimentar o vizinho no elevador ou encontrá-lo no mercado mais próximo, nem a vendinha da rua existe mais, provavelmente foi substituída por alguma hamburgueria ou pub que só abrirá à noite.
Considerando-se ainda, o fato de Fortaleza ser uma cidade litorânea que atrai muitos turistas e que boa parte das aplicações financeiras da Prefeitura são voltadas para mascarar e passar a imagem de uma cidade “agradável” aos olhos dos turistas, ou seja, sem conflitos e desigualdades sociais.
Dessa forma, delineia-se uma cidade onde uma quantidade muito restrita da população, ainda que pautada em suas noções individualistas de convívio social, tem acesso a infraestrutura urbana adequada e a grande maioria não tem esse direito atendido.
Como é o caso do bairro Grande Bom Jardim, conforme conta em entrevista ao Portal da Liga, o integrante do Centro em Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), Rogério Costa pontua: “Ainda temos situações absurdas como, por exemplo, casas sem banheiro”.
A população menos favorecida constrói a cidade de forma criativa e dentro de suas condições. O povo construtor, desde os que levantam os seus próprios barracos em assentamentos até os que erguem apartamentos destinados à classe mais abastada, são representantes dessa resistência.
Além de construir dinâmicas sociais de convívio nas comunidades que têm outra configuração: a vizinhança é mais próxima, a segurança tende a ser responsabilidade coletiva em que todos costumam estar atentos às casas uns dos outros, as ruas são habitadas não só por carros, mas também por moradores locais, pelo menos até determinado horário, a vendinha ainda existe e alimenta tanto seus donos quanto a comunidade.
É claro, mesmo que isso signifique nos submeter a encontros e conflitos que nos colocam aos desafios de lidar com as diferenças e o outro. Ainda assim, dessa maneira, se cultiva uma relação de pertencimento distinta com o espaço e o solo que se pisa, além do fortalecimento de um sentimento de coletividade e comunhão presente na memória e história dos moradores.
Integrante da Frente de Luta por Moradia Digna, Dona Cícera é moradora da ocupação do Planalto do Pici há 27 anos. Ela ressalta o amor que tem pelo local em que mora: “Ali você fez a sua vida, você tem uma relação, não só de família mas, também, com os vizinhos e isso é muito dolorido quando você se sente ameaçado por ter que deixar aquilo, um local que você gosta, que você ajudou a construir”.
Quando a especulação imobiliária chega, ela vem frequentemente associada à Prefeitura, que alinhada aos interesses da iniciativa privada, efetua ações de remoção e realocação das famílias, sem levar em conta a relação afetiva dos moradores com o espaço e sem considerar os impactos dessa desterritorialização.
Comunidades que lutam por permanência são constantemente ameaçadas por empreendimentos especulativos. Como é o caso da comunidade da Trilha do Senhor, que fica no bairro nobre de Fortaleza: Aldeota. Com a obra do Veículo Leve sobre os Trilhos (VLT) ramal Parangaba-Mucuripe, prometida para a Copa de 2014, várias famílias foram removidas do local e outras tantas lutam para permanecer onde estão.
Neste aniversário de Fortaleza destaca-se a urgência de convidar a Cidade a abraçar as comunidades, para incorporar essa rede de conjuntos às dinâmicas e construir uma gestão voltada para o desenvolvimento coletivo. Neste desenvolvimento, as intervenções do Estado deveriam pautar a garantia a moradia de qualidade, trabalhando de forma horizontal com a população que já vem construindo o espaço muito antes de ações governamentais.
Dona Cícera ressalta que essas mudanças só acontecem com uma comunidade organizada: “Cabe a nós moradores, nos unirmos, lutar e dizer que não é como eles querem”. Ela também convoca a população e a Prefeitura a conhecer a realidade de cada conjunto.
Por fim, como pontua o integrante da CDVHS, Rogério: “As Fortalezas precisam se reencontrar, a Fortaleza turística com a Fortaleza das periferias e esse encontro deve gerar uma cidade que acolha todas as comunidades, que receba bem e trate bem dos fortalezenses e dos migrantes que se instalaram aqui na cidade. Todos, todas e todes precisam vivenciar o direito à cidade na sua profundidade, na sua inteireza, do jeito que todo mundo merece”.
Fortaleza precisa se reencontrar com a força de seus antepassados. Isso está refletido no presente, na constante luta do poder popular frente às disputas de terra em que os poucos ricos tentam tirar da maioria da população o que lhes é de direito: uma cidade justa e igualitária construída pelo seu povo.
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